Olhar estrangeiro: temporada de Benzema no Real dá esperança para a França
Bruno Rodrigues, Thomas Simon e Philippe Auclair
Da France Football (França)*
Começando por um fato incontestável: a 10ª temporada de Karim Benzema no mais alto nível tem sido até o momento a mais satisfatória de sua carreira. Liberado pela partida de seu principal rival, Gonzalo Higuaín, para o Napoli no ano passado, o ex-jogador do Lyon tem feito a festa no Real Madrid. Essa, ao menos, é a opinião de Grégory Coupet, o ex-goleiro do Lyon e da seleção francesa, que testemunhou a estreia profissional de Benzema, aos 17 anos, em dezembro de 2004.
"Ele realizou plenamente seu potencial", diz Coupet. "Para mim, ele tem um futebol redondo, técnica e força mental para ser o melhor atacante francês no momento." Mesmo que os números pareçam indicar o contrário –ele marcou 24 gols em 51 partidas pelo seu clube na última temporada, em comparação a 32 em 52 em 2011-2012– ele exerce uma maior influência no jogo do Real do que antes. "Ele se tornou mais influente", diz Coupet. "Você sente que ele está bem, que emana serenidade e confiança."
E isso em um papel notadamente diferente do que tradicionalmente se espera de um camisa 9 clássico, particularmente em sua movimentação à frente; algo que nem sempre contou a seu favor na seleção nacional no passado, precisa ser dito. Centroavantes genuínos sempre foram um artigo raro na França, fora Just Fontaine e Jean-Pierre Papin.
Que o atacante nascido em Lyon tenha atingido tal nível está longe de ser uma surpresa para aqueles que o seguem desde que ingressou no Lyon quando tinha 9 anos. Mesmo naquela época, foi previsto que ele se tornaria um "supercraque". Coupet diz que sim quando perguntado se já tinha ouvido sobre o prodígio antes de se juntar aos juniores. Na verdade, todos já tinham. Um atacante de 15 anos que marca perto de 40 gols em uma única temporada pela categoria sub-16 do clube dificilmente passa desapercebido.
Dizem que Gérard Houllier decidiu contra contratar um terceiro atacante para complementar Fred e John Carew na época, pois o diretor esportivo do Lyon, Bernard Lacombe, lhe disse: "Nós já temos um".
A carreira profissional de Benzema começou de forma explosiva em 2004-2005, quando ainda não tinha celebrado seu 17º aniversário, primeiro pelos juniores (12 gols em 14 jogos), depois no Campeonato Francês, quando Paul Le Guen o chamou para a vitória por 2 a 0 sobre o Metz, na qual deu sua primeira assistência.
Coupet era seu companheiro de equipe naquele dia. "Ele era um jogador à parte. Fora de campo, muito discreto, na dele, sem nenhum mau comportamento. Dentro de campo a história era muito diferente. Geralmente quando um jogador chega ao time profissional (Benzema só assinaria seu primeiro contrato seis meses depois), ele ainda carece de algumas coisas, seja taticamente, em seu posicionamento ou na velocidade com que executa suas habilidades. Benzema? Não. Sua destreza era impressionante."
Benzema ainda aguardaria até o final daquele ano –6 de dezembro de 2005– para marcar seu primeiro gol como profissional, em uma vitória por 2 a 1 contra o Rosenborg na Liga dos Campeões, e a maioria de suas participações naquela temporada foi como substituto. Mas seu progresso ganhou velocidade após a marcação –em Ajaccio, em 4 de março de 2006– do primeiro de seus 43 gols em 112 jogos na Ligue 1 pelo clube de sua cidade, aos quais ele acrescentou 12 em 19 na Liga dos Campeões.
A confiança de Houllier foi recompensada. O adolescente parecia não estar perturbado por sua própria ascensão. Em outubro de 2006, contra o Marselha, ao enfrentar um ambiente hostil no Vélodrome, depois que Fred sofreu uma lesão no início do jogo, ele fez de voleio o quarto gol do time visitante, um gol com potencial de definir o título. A França não podia mais ignorá-lo. Nem os principais clubes da Europa.
Se um problema físico não o tivesse impedido de atender à primeira convocação de Raymond Domenechl, em novembro de 2006, ele não teria tido que esperar tanto para celebrá-la, em um amistoso contra a Áustria em 28 de março de 2007, quando substituiu Djibril Cissé no intervalo para marcar o único gol da partida.
Apesar de seus sucessos domésticos, o Lyon –com o qual ele ganhou a Chuteira de Ouro francesa em 2007-2008, com 20 gols– estava se tornando um clube pequeno demais para um jogador destinado a se tornar, ao menos como assim se pensava, um dos melhores atacantes de seu país.
Sir Alex Ferguson fez com que ele fosse sondado para o Manchester United, assim como Florentino Pérez, para quem contratar o jovem francês se tornou um "projeto pessoal", que foi coroado com sucesso quando o Lyon aceitou a proposta de 35 milhões de euros em julho de 2009. As opiniões divergem sobre se o progresso subsequente de Benzema no Real Madrid, que está além de discussão quando apenas as estatísticas são levadas em consideração, prova que a promessa que demonstrou assim que ingressou no Lyon realmente se concretizou. Ocorreram deslizes na sua vida pessoal que foram amplamente noticiados pela imprensa francesa. A influência de sua comitiva também tem sido questionada.
No começo, o Campeonato Espanhol provou ser um ambiente difícil no qual florescer, apesar de ser verdade que a preferência de seu primeiro técnico no Real, Manuel Pellegrini, por Gonzalo Higuaín não o ajudou. Um total de nove gols em 33 games em 2009-2010 não foi o retorno pelo qual Pérez esperava.
De forma crucial, Pellegrini, e não Benzema, era visto como sendo o problema, e a carreira do atacante francês pôde retomar seu curso em ascensão. E os 26 gols em 2010-2011, 32 em 2011-2012, o tornaram o principal artilheiro francês na história do Real Madrid e do Espanhol –superando os recordes de um certo Zinedine Zidane.
Se, como alguns outros, ele considerou a última temporada do reinado de José Mourinho no Bernabéu como sendo um desafio, ele tem prosperado desde que Carlo Ancelotti assumiu, com o técnico italiano o escalando entre os titulares mais vezes do que qualquer um dos outros jogadores, com exceção de Sergio Ramos. "A chegada de Ancelotti fez um bem danado a ele", diz Coupet. "Ele também parece mais em paz consigo mesmo fora de campo. Ele se tornou pai." (A parceira de Benzema, Chloe De Launay, deu à luz uma menina chamada Melia em fevereiro de 2014).
E ele voltou a marcar pela seleção francesa, após jogar 1.222 minutos sem gol entre junho de 2012 e outubro de 2013. Um dos gols marcados depois desse período de seca foi crucial: o atacante recolocou Les Bleus em vantagem na repescagem contra a Ucrânia, o que contribuiu muito para desarmar as críticas constantes de "desaparecer em jogos importantes" pela seleção, com as quais tinha um relacionamento complexo.
"A Argélia é o meu país", ele disse em 2006, "a França é só esporte". Ele não canta "A Marselhesa" (Michel Platini também não cantava), um fato que também tem sido usado por algumas partes, não necessariamente inocentes, para questionar sua dedicação à causa nacional.
Se o talento dele nunca foi questionado, seu compromisso foi, repetidas vezes. O retorno de um gol em um intervalo de cerca de três jogos pela França é abaixo do que poderia se esperar. Após assistir ao fiasco da Copa do Mundo de 2010 pela televisão, ele agora tem a chance de meio que se vingar no Brasil. Mas mesmo um fã como Coupet acredita que cabe ao jogador "se impor, não apenas como líder em técnica, como ele já é, mas também como alguém que é inquestionável dentro do grupo. Ele deve ser visto e ouvido. De qualquer modo, eu espero que ele varra tudo à sua frente".
A isso toda a França diz "amém". Se Les Bleus conseguirão algo ou não no Brasil provavelmente dependerá da qualidade das apresentações dele ali. Se ele levar em suas veias sua melhor temporada no Real Madrid, então quem sabe? Karim Benzema pode muito bem vir a ser o fator X da França.
Como joga a a França
Após um longo período de sondagem e experimentação, no qual testou esquemas 4-2-3-1, 4-1-4-1 e 4-4-2, Didier Deschamps finalmente decidiu pelo esquema 4-3-3 que, aos seus olhos, é o mais adequado para as características dos homens que ele escolheu para a Copa do Mundo.
O ex-meia e treinador da Juventus não acredita na superioridade nata de um esquema sobre outro. Ele é acima de tudo um pragmático, cujo pensamento tático foi moldado pela Séria A da Itália, muito mais do que pelo estilo mais romântico, mais ousado, da escola Nantaise, onde ele estudou futebol sob a égide de "Coco" Suaudeau. O esquema 4-3-3 parece maximizar o potencial dos jogadores que ele escolheu, porque eram "os melhores para o trabalho", se não automaticamente "os melhores" em suas posições, como Samir Nasri aprendeu para seu desprazer.
Isso se traduz no campo como quatro defensores em linha, um meio de campo com três homens caracterizados por sua multifuncionalidade e disposição de trocar posições, e um tridente no ataque tanto incisivo quanto tecnicamente bem acima da média.
Esta formação, que a França usará de novo contra Honduras em seu jogo inicial em 15 de junho é, como vimos, uma das várias que foram testadas pelo técnico dos Les Bleus. Nem sempre de forma convincente, precisa ser dito. Mas os jogadores que Deschamps tinha ao seu dispor durante a fase de testes não eram necessariamente aqueles que precisava para tornar o 4-3-3 seu sistema padrão. A França teve dificuldades contra o Japão (0 a 1), afundou contra o Brasil (0 a 3) e, duas vezes, sofreu contra a Espanha na campanha das eliminatórias –até que o técnico optou por voltar ao 4-4-2 durante o jogo em Madri.
Agora, quase todas as peças se encaixam no quebra-cabeça, como mostrado na vitória por 3 a 0 contra a Ucrânia, no jogo de volta da repescagem da Copa do Mundo, um jogo que agora é ponto de referência para o técnico. Não há razão para Deschamps desfazer o que montou, o que dá à França tanto ameaça à frente e equilíbrio por todo "le bloc collectif", como chamam os franceses.
À frente do goleiro e capitão Hugo Lloris, os laterais Mathieu Debuchy e Patrice Evra, talvez não os mais confiáveis dos defensores, serão encorajados a se aventurarem em suas respectivas laterais de campo, como é adequado às suas inclinações naturais. Sobrecarregar os laterais adversários com o apoio de Franck Ribéry e, provavelmente, Mathieu Valbuena, deve ser uma das armas mais potentes da França. No miolo da zaga, o elegante Raphaël Varane estará acompanhado de Laurent Koscielny, do Arsenal, ou de Mamadou Sakho, do Liverpool –qual deles dependerá mais da forma física do que de considerações puramente táticas.
Não há argumento sensível contrário ao meio-campo composto por Yohan Cabaye (o "sentinela"), Paul Pogba e Blaise Matuidi. O equilíbrio deste trio será um dos pontos mais fortes da França. Técnica, capacidade atlética e habilidade de conduzir a bola– eles possuem tudo isso. Eles também têm presença à frente do gol adversário, o que deve convencer Karim Benzema que não precisa cair (como fazia com frequência ao longo da Eurocopa 2012), e se concentrar no que tem que fazer –e sabe fazer: marcar gols.
Ribéry, o atacante mais eficaz e prolífico nas eliminatórias, estará posicionado em seu lado favorito, à esquerda, mas ainda há dúvida sobre que ficará à direita no tridente de ataque, mesmo que Valbuena, que sempre parece reservar suas melhores apresentações para a seleção nacional, comece com uma pequena vantagem sobre Loïc Rémy e o versátil Antoine Griezmann.
Deschamps acredita que, com estes homens e este sistema, sua equipe pode otimizar o controle do jogo e que, quando a França tiver a posse de bola, as triangulações aparecerão quase naturalmente. Assim foi contra a Ucrânia, mesmo que, naquela ocasião, a simples agressividade e intensidade empregada pelos franceses no jogo tenha importado mais que a organização dentro de campo. Isso, tanto quanto a disciplina tática, agradará o combatente pragmático que Deschamps foi por toda sua carreira.
* Este artigo é parte da série "Olhar Estrangeiro", produzida por 32 veículos de mídia dos países que disputam a Copa do Mundo, como UOL, Guardian (Inglaterra) e France Football (França).
Tradutor: George El Khouri Andolfato