Olhar estrangeiro: meia da Bósnia salvou a vida dos pais quando era bebê

Sasa Ibrulj

Do Sport.ba (Bósnia)

Faruk Hadzibegic baixou sua cabeça até o peito e caminhou para o centro do estádio Artemio Franchi em Florença. Era junho de 1990 e, segundos antes, o goleiro da Argentina, Sergio Goycochea, defendeu sua cobrança de pênalti,  o que significou que a Argentina de Diego Maradona negou por pouco à Iugoslávia uma vaga nas semifinais da Copa do Mundo. A equipe liderada pelo técnico bósnio Ivica Osim e o armador veterano, outro bósnio, Safet Susic, jogou a última partida na história do país, que estava prestes a se desintegrar em uma guerra terrível que teve início no ano seguinte.

Dois meses depois, do outro lado do Mar Adriático, na cidadezinha de Zvornik, uma jovem senhora entrou na velha sede de um clube de futebol local chamado Drina, o nome do belo rio que separa a Bósnia da Sérvia. O marido dela, um certo Fahrudin Pjanic, estava em Luxemburgo, onde concordou em jogar futebol e ter um emprego fora de campo, mas seu pedido de transferência foi negado pela minúscula equipe da terceira divisão.

"Foi uma época difícil", explicou Fahrudin ao semanário bósnio "Slobodna Bosna" anos depois. "Jogando na terceira divisão em lugares pequenos por todo o país, era possível sentir que algo estava errado e que tempos ruins se aproximavam."

Fatima, como sua esposa se chamava, continuou visitando o clube e tentando convencer o presidente a deixar seu marido partir e ter a chance de uma vida melhor. Dessa vez ela segurava um bebê em seus braços e, após ele recusar novamente liberar Fahrudin de seu contrato, ela começou a chorar. Seu filho, Miralem, fez o mesmo.

"Como qualquer outro bebê, ele sentiu que algo estava errado quando sua mãe chorou", disse Fatima na mesma entrevista. "Ele estava chorando e o presidente sentiu pena de nós, assinou os documentos e liberou Fahrudin. Se não fosse por Miralem, nós provavelmente nunca teríamos deixado o país."

Vinte e quatro anos depois, Miralem Pjanic, o meia da Roma e astro internacional, entrará no campo do icônico estádio do Maracanã no Rio e enfrentará a Argentina de Lionel Messi. Ele faz parte de uma equipe única no mundo do futebol, uma equipe que construiu seus sucessos a partir das cinzas de um país destruído e dividido, a Bósnia-Herzegóvina. "Este é o melhor sentimento de todos", disse Pjanic às lágrimas na televisão nacional, pouco depois da vitória na Lituânia em outubro, na qual a Bósnia garantiu sua vaga em um grande torneio pela primeira vez. "É para isso que jogamos. É para isso que vivemos."

Miralem deu seus primeiros passos em Luxemburgo, para onde Fahrudin e a família acabaram se mudando em 1990. Poucos meses depois, a Iugoslávia se viu pega no turbilhão de uma guerra brutal e a cidade de Zvornik testemunhou milhares de muçulmanos bósnios serem mortos ou forçados a deixar suas casas. Fahrudin estava ciente de que ele e sua família tinham escapado de um destino semelhante graças ao seu filho e fez o que pôde para ser um bom provedor. Às vezes ele trabalhava 12 horas por dia, mas mesmo assim conseguia praticar e jogar futebol. O pequeno Miralem o acompanhava, já que eles não podiam pagar uma babá.

"Ele estava sempre brincando com uma bola, constantemente. Eu me recordo de nossas viagens de Luxemburgo à Bósnia. Ele passava as 12 horas da viagem de carro brincando com a bola. Certo dia, nós voltamos para casa tarde da noite, e o som de batidas vindo da garagem me acordou às 7 horas da manhã. Eu fui até lá com meu pai, esperando encontrar ladrões, mas era apenas Miralem praticando ainda mais."

Pjanic Jr. ainda era menino quando ingressou no clube francês Metz e sua academia jovem, famosa por produzir talentos como Robert Pires, Louis Saha e Emmanuel Adebayor. Aos 12 anos, Miralem era o melhor jogador de sua faixa etária e sua família começou a receber ofertas de clubes de toda a Europa. A primeira oferta oficial chegou do PSV Eindhoven da Holanda, mas a família Pjanic queria que ele permanecesse mais perto de casa. Eles resistiram a muitas outras ofertas e Miralem fez sua estreia profissional pelo Metz, aos 17 anos, em 18 de agosto de 2007, entrando como reserva em um empate sem gols contra o Paris Saint-Germain.

Era óbvio que o Metz era apenas um degrau para Pjanic. Os clubes faziam fila e a especulação na mídia começou a mencionar tanto o Barcelona quanto o Real Madrid, os dois clubes milaneses, assim como o Arsenal e Chelsea da Premier League inglesa. Em meados de 2008, Pjanic concordou com a transferência –mas apenas para a distância curta de Lyon. Foi uma transferência lógica na época –o Lyon era a força dominante na França e participante regular na Liga dos Campeões, e Pjanic queria provar a si mesmo na Ligue 1.

Após a primeira temporada de ajuste ao seu novo clube, Pjanic se estabeleceu como titular e se viu sob os holofotes. Ainda apenas um adolescente, naturalmente tímido e reticente, ele era inconsistente e foi criticado por seu físico frágil, se machucava com frequência e parecia carecer de ritmo e energia. Mas era impossível ignorar seu talento –Pjanic estava se desenvolvendo em um belo jogador, com grande visão de jogo e técnica apurada.

Não eram apenas os clubes que estavam disputando para recrutar Pjanic. Por ter se mudado para Luxemburgo ainda bebê, ele tinha direito a jogar pela nação minúscula que ele representou nas categorias de base. Logo a França começou a se interessar pelo passaporte de Pjanic, tentando persuadi-lo a jogar por Les Bleus. Mas desde o início Pjanic destacou que só havia um país que queria representar –o país em que nasceu. Apesar das dificuldades que teve por anos para obter cidadania bósnia, tanto Miralem quanto Fahrudin não desistiram.

Em 2008, o então técnico Miroslav Blazevic lhe permitiu estrear pela seleção da Bósnia-Herzegóvina e Pjanic se transformou instantaneamente no favorito da torcida. Mas Blazevic era um dos que duvidavam; ele não gostava de seu tipo físico frágil e alegava que ele não podia fazer par com Misimovic. Pjanic jogava apenas poucos minutos e era convocado para amistosos, mas não recebia um papel importante. Até a campanha das eliminatórias para a Copa do Mundo de 2014.

Pelo clube, Pjanic marcou o gol para o Lyon que eliminou o Real Madrid da Liga dos Campeões no Bernabéu, e chegou até a semifinal da mesma competição, antes de se transferir para a Roma em 2011 e se estabelecer como um dos melhores meias da Série A da Itália.

Pjanic foi uma figura fundamental na marcha bósnia rumo ao Brasil, e deverá ser um dos jogadores mais importantes dos Dragões neste mês. Um jogador que joga com graça, gosta de seu futebol e proporciona alegria para aqueles que o assistem. O bebê que salvou sua família com seu choro cresceu e é maduro o suficiente para carregar seu país, sob a orientação de Safet Susic, ao sucesso e continuar de onde o futebol bósnio, como parte da antiga Iugoslávia, parou no verão de 1990.

"Eu sonhava com isso –quando eu era menino, eu viajei com minha família e amigos de Luxemburgo para assistir uma partida crucial contra a Dinamarca nas eliminatórias da Eurocopa 2004. Desde aquele dia, eu sonhava em representar meu país em um torneio desses e agora estamos lá. E tudo é possível."

Este será o primeiro grande torneio para a Bósnia-Herzegóvina como um país independente, mas certamente não será o último. Não com Miralem Pjanic, ainda com apenas 24 anos, como líder da futura geração.

Como joga a Bósnia-Herzegóvina

A Bósnia-Herzegóvina encantou o mundo do futebol com sua postura voltada ao ataque durante as eliminatórias. Safet Susic encheu sua equipe com jogadores atraentes e criativos, lhes dando muito mais liberdade para tomarem decisões. Isso resultou na Bósnia-Herzegovina parecendo poderosa contra equipes mais fracas, ou mesmo contra a extremamente defensiva Grécia, impondo seu próprio estilo e dominando a maioria das partidas.

Susic não é um homem que gosta de falar sobre táticas ou de explicar seu sistema em público. Ele não é um homem de muitas palavras, e quando se trata da escalação, ele raramente usa números para explicá-la. Pode ser que isso se deva simplesmente por ser difícil descrever sua formação da forma numérica clássica. Na maioria das partidas nos últimos dois anos, ele escalou seus dois melhores –e únicos– atacantes, Edin Dzeko e Vedad Ibisevic, à frente, criando uma espécie de 4-4-2. Zvjezdan Misimovic foi colocado com frequência logo atrás desses dois, com Miralem Pjanic vindo da direita e Senad Lulic da esquerda, com Haris Medunjanin normalmente atuando como volante. Com amplas opções de ataque, os Dragões podem ser excepcionalmente perigosos quando estão com a posse da bola, tendo controle sobre ela e o ritmo do jogo. 

Mas com o passar do tempo, essa abordagem revelou ser uma espada de dois gumes. Até mesmo o próprio técnico admite publicamente que sua seleção é limitada a 10 a 12 jogadores e que a diferença de qualidade entre eles e os reservas é imensa. O pool restrito de jogadores força Susic a improvisar muito, tentando escalar todos os grandes nomes entre os titulares. Jogadores com mesmas características ou semelhantes –Lulic e Sejad Salihovic, Pjanic e Misimovic, Dzeko e Ibisevic, costumam neutralizar um ao outro ou acabam completamente perdidos. Por causa disso, a Bósnia costuma parecer taticamente ingênua e desorganizada. 

Isso cria um dos dois maiores problemas da equipe bósnia. Ela tende a ser altamente desequilibrada quando se defende. Ter tantos jogadores criativos no ataque significa perda de estabilidade atrás. Jogadores como Pjanic, Misimovic ou Ibisevic avançam e criam enormes buracos no meio e na defesa. O outro problema é o fato de Susic não contar com um volante apropriado em sua equipe. A aposentadoria de Elvir Rahimic do CSKA fez com que, novamente, Susic tivesse que improvisar. Medunjanin, que venceu o Campeonato Europeu sub-21 pela Holanda antes de trocá-la pela Bósnia, tem exercido esse papel com mais frequência, mas ele é um meia natural e suas habilidades como defensor deixam um tanto a desejar. Não há jogador que possa preencher essa lacuna de forma eficaz, deixando expostos os dois zagueiros lentos no miolo da zaga –Emir Spahic e Ermin Bicakcic.

Partidas contra equipes fluidas e com bastante mobilidade, com organização e disciplina –como a Argentina, Estados Unidos ou mesmo o Egito em fevereiro– mostraram que a Bósnia-Herzegóvina tem dificuldade em recuperar a posse de bola e impedir os contra-ataques, e melhorar isso será o imperativo de Susic em seus preparativos, especialmente para as partidas contra Argentina e Nigéria.

Geralmente considerado teimoso, parece que o técnico bósnio percebeu que jogar com dois atacantes contra a Argentina seria suicídio. Durante as eliminatórias para a  Eurocopa 2012 ele experimentou com frequência o esquema 4-2-3-1 e isso quase deu certo em Paris contra a França, onde a Bósnia não venceu por causa de um pênalti controverso no final.

Na ocasião, ele utilizou Medunjanin como meia de ligação ao lado do destrutivo Rahimic. O problema é que atualmente ele não conta com um jogador com as características de Rahimic.  Susic testou Sejad Salihovic, Adnan Zahirovic (que acabou não convocado para a seleção que jogará no Brasil) e dois outros nomes para esse papel, mas nenhuma solução foi encontrada. Esse é o motivo para ter decidido chamar Muhamed Besic, o jovem defensor do Ferencvaros criado na Alemanha, como possível resposta para o problema. Outra solução poderia ser o lateral-esquerdo do Schalke, Sead Kolasinac, cujas habilidades defensivas poderiam casar bem com a criatividade de Medunjanin.

De qualquer modo, é quase certo que Susic, cuja equipe foi facilmente derrotada pela Argentina de Alejandro Sabella em Saint Louis (2 a 0), em novembro, terá que mudar sua abordagem e mostrar mais pragmatismo, especialmente nas partidas contra a Argentina e Nigéria. O tempo não está ao seu lado, de modo que mais improvisos, e imperfeições, são esperados.

Jogo Rápido - Bósnia
  • Quem será o jogador que surpreenderá a todos na Copa?
    Kolasinac é o que o time precisa desesperadamente: um defensor jovem e moderno, que estará na equipe nos próximos 10 anos. Ao mesmo tempo, tem maturidade suficiente para que se possa contar com ele no presente. Apesar de sua posição natural ser a lateral-esquerda, pode ser a solução para o papel de volante. Se isso acontecer, solucionará um dos maiores problemas da equipe e seu papel será crucial
  • Qual é o jogador com maior probabilidade de decepcionar?
    É simples: se as coisas não derem certo, o melhor jogador é sempre o 1º a ser culpado. Dzeko foi um dos que carregaram a equipe nas costas nas eliminatórias, marcando 10 gols e fazendo três assistências. Ele se transformou no maior artilheiro desde a independência do país, e é o maior herói na Bósnia. A seleção depende de Dzeko e de seus gols, e se ele fracassar, as críticas serão inevitáveis
  • Qual é a meta realista de sua seleção na Copa do Mundo e por quê?
    Se fôssemos realistas, nós reconheceríamos o fato de finalmente termos chegado a uma Copa já é um grande feito. Mas todo o país está repleto de vibrações positivas geradas por suas apresentações nas eliminatórias e a maioria das pessoas vê este grupo como viável. Isso significa basicamente que a meta é que a Bósnia-Herzegóvina supere a fase de grupos e chegue à fase de mata-mata.

Curiosidades - Bósnia
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    Edin Dzeko
    O atacante do Manchester City é o maior artilheiro da história do país e seu maior astro. O início de sua carreira foi completamente diferente ?apesar de ter recebido um contrato profissional pelo clube onde se formou, o Zeljeznicar Sarajevo, na sua estreia, o jogador de 17 anos foi apelidado zombeteiramente por sua própria torcida de "Kloc" ?a gíria local para poste de luz. Foto: Getty Images
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    Asmir Begovic
    Begovic deu seus primeiros passos na carreira sob orientação de seu pai, Amir. A família de Begovic fugiu do país em 1992 para escapar da guerra e passou anos no exílio na Alemanha e Canadá. Seu pai, sendo um ex-goleiro do time local Leotar Trebinje, na 2ª divisão da Iugoslávia, continuou trabalhando com o filho o tempo todo, sendo seu treinador pessoal até que Asmir se mudou para a Inglaterra. Foto: Best Photo Agency & C / Pier Gia
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    Sejad Salihovic
    Após não jogar o suficiente no Hertha Berlin, em 2006 Salihovic decidiu baixar de divisões e se juntou ao Hoffenheim, uma equipe que na época estava na terceira divisão do campeonato alemão. De lá para cá ele se transformou em seu tenente leal, jogando 230 partidas e o ajudando a se tornar uma equipe regular da Bundesliga. Foto: Best Photo Agency & C / Pier Gia
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    Tino-Sven Susic
    O meia, que joga pelo Hajduk Split na Croácia, estreou na seleção em março, e ter seu nome na lista de Safet Susic para a Copa gerou problemas. Tino-Sven é sobrinho de Safet, e sua convocação provocou questionamentos de nepotismo na equipe. O técnico não ajudou ao se recusar a explicar os motivos para escolher um jogador que não atua regularmente na equipe do medíocre campeonato croata. Foto: Getty Images
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    Haris Medunjanin
    O meia, que jogou pelo AZ Alkmaar, na Holanda, Real Valladolid, na Espanha, e Maccabi Tel Aviv, em Israel, antes de seu mudar para seu clube atual, o Gaziantepspor, na Turquia, é o único jogador da seleção bósnia a conquistar de fato um troféu com uma seleção nacional. Medunjanin foi membro da seleção holandesa sub-21 que venceu o Campeonato Europeu disputado em Portugal em 2006. Foto: Best Photo Agency & C / Pier Gia
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    Izet Hajrovic
    Menos de um ano depois de estrear pela Suíça, Hajrovic mudou de ideia e estava vestindo a camisa bósnia. Mas sua convocação causou controvérsia. Dzeko o criticou publicamente por ter optado pela Suíça. Outros jogadores experientes não escondiam a revolta. Mas quando Hajrovic marcou um gol soberbo na Eslováquia para virar o placar no jogo mais importante das eliminatórias, as disputas terminaram. Foto: Best Photo Agency & C / Pier Gia

* Este artigo é parte da série "Olhar Estrangeiro", produzida por 32 veículos de mídia dos países que disputam a Copa do Mundo, como UOL, Guardian (Inglaterra) e France Football (França).

Tradutor: George El Khouri Andolfato

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