01/12/2009 - 07h01

País da Copa receberá o mundo em 2010 com feridas raciais ainda escancaradas

Alexandre Sinato
Em Johanesburgo (África do Sul)

Philemon Nebedi entra no museu do Apartheid, em Johanesburgo, e logo interrompe a caminhada em frente a uma placa. Com força, aponta o dedo para os dizeres e os repete em voz alta: "o homem branco é superior na África do Sul por toda sua natureza [...] e seguirá superior até o final". A frase foi dita durante o regime de segregação racial que imperou no país. O inconformismo do taxista de origem zulu, quase 20 anos depois, traduz a realidade que ainda vigora na sede da próxima Copa do Mundo.

 

FERIDAS RACIAIS AINDA ABERTAS

  • Entrada do Museu do Apartheid ‘separa’ os visitantes de acordo com as raças impressas aleatoriamente nos ingressos de entrada

  • O taxista Philemon Nebedi visita o museu e lembra dos duros tempos de apartheid na África do Sul

  • Uniforme e foto lembram dia histórico em que Mandela saudou a seleção nacional de rúgbi após a final do Mundial logo após o término do apartheid

Muitas feridas ainda estão abertas. O tempo ainda não curou todos os desmandos promovidos pelo governo racista que mandou na África do Sul por mais de quatro décadas. A sede do Mundial de 2010 hoje vive pacificamente, mas a separação racial ainda não está totalmente exterminada. São muitos os resquícios dos tempos marcados pela crueldade.

O termo Apartheid significa "separação" em africâner (idioma dos brancos e imposto aos demais) e define claramente como foi o período entre 1948 e início da década de 1990. Os brancos mandavam no país e privavam as demais raças da cidadania. Os direitos sociais, políticos e econômicos não existiam para negros e demais etnias não-brancas.

A cerca de seis meses da Copa, a constituição sul-africana concede direitos iguais a todos. As leis não priorizam raças. Na prática, porém, a segregação persiste. A minoria branca, equivalente a cerca de 10% da população (segundo levantamento de 2001), vive em condições superiores e concentra boa parte da renda. Mais de 90% dos pobres são negros e a renda per capita dos brancos é, na média, nove vezes maior.

Em lojas, restaurantes e diferentes estabelecimentos comerciais, a maioria da chefia é branca. Nos bairros ricos também. Nos pobres, encontrar um branco é missão quase impossível. É raro constatar mesas divididas por membros de diferentes raças. A mistura ainda é pequena. O abismo social, político e econômico já foi maior, mas ainda é muito grande.

A tolerância também cresce aos poucos. No entanto, é cercada de desconfiança das duas partes. Não é preciso conhecer muitas pessoas para ter exemplos claros e objetivos de tal cenário. Após passar por cinco das nove cidades que receberão a Copa, a reportagem do UOL Esporte pôde comprovar isso.

"Hoje negros e brancos vivem em harmonia, mas sei que os brancos não gostam dos negros. Eles só fingem que gostam, mas muitos nos tratam como antes", resume Philemon, taxista citado no início e ex-morador do Soweto, bairro principalmente de negros e foco de grande resistência ao Apartheid.

O outro lado da moeda também tem suas críticas. "Muitos negros se apoiam no Apartheid para justificar seus erros atuais ou suas dificuldades. Eles foram desfavorecidos, mas hoje têm plenas condições para melhorar de vida. Só precisam se esforçar, o que muitas vezes não acontece", diz Marko, sérvio e dono de um restaurante.

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Mas o maior inconformismo é dos negros e não-brancos. E razões não faltam para isso. Durante o Apartheid, a vida era um estado constante de tensão. Qualquer comparação da atualidade com o passado recente soa como uma tentativa superficial de compreender o regime separatista.

Os negros tinham incontáveis restrições. Era proibido votar e exercer uma série de empregos, assim como usar ambulâncias, hospitais, piscinas, cinemas, praias, bibliotecas, escolas, trens e ônibus destinados aos brancos, invariavelmente em melhores condições.

E não era só. Se um negro estuprasse uma branca, era condenado à prisão perpétua. Se um branco estuprasse uma negra, recebia no máximo uma multa. A relação sexual entre as duas raças era considerada crime. Após o anoitecer, os negros não podiam andar pelas ruas.

"Era terrível, quem não viveu isso não consegue imaginar. Foram tempos muitos duros. Era como estar preso em sua própria casa. Os policiais negros, por exemplo, não podiam prender brancos. Em todos os sentidos, éramos tratados como verdadeiros animais", afirma Philemon.

Os negros também foram forçados a deixar as áreas centrais das cidades. Ordens de despejo lotaram as ainda numerosas townships (bairros em condições precárias e afastados do centro). "As autoridades chegavam em nossas casas, colocavam todas nossas coisas em um caminhão e jogavam tudo nesses bairros. Depois diziam: 'agora escolham sua nova casa'", recorda Gabriel Kong, negro da etnia swazi.

As memórias dos tempos de Apartheid ainda são muito recentes. Lentamente, as raças que antes foram excluídas no regime separatista tentam se reerguer. Começam a diminuir a diferença social imposta por uma minoria. E a Copa pode ajudar a virar essa página. Afinal, esporte preferido dos negros sul-africanos, o futebol será o responsável por atrair os olhares do mundo para um país que já foi exemplo a não ser seguido.

 

 

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