Carisma e intuição de Scolari ainda deixam saudades em Portugal

Luís Aguilar

Do UOL, em Lisboa

  • AP Photo/Thomas Kienzle

    Scolari vibra com portugueses na Eurocopa de 2004: união histórica na seleção

    Scolari vibra com portugueses na Eurocopa de 2004: união histórica na seleção

E se Luiz Felipe Scolari, hoje com a missão de levar o Brasil ao hexacampeonato, voltasse a Portugal? O futebol dá muitas voltas e o próprio já admitiu, por mais de uma vez, sentir saudades dos tempos que passou na seleção portuguesa. O sentimento é recíproco. Scolari saiu após a Euro 2008 e continua a ter um lugar especial no coração dos portugueses. Jogadores e diretores que trabalharam com ele não têm dúvidas em afirmar que foi o melhor treinador que Portugal já teve.

"[Scolari] Fez a diferença desde o momento em que chegou. A sua forma de estar e de comunicar contribuíram para acabar com uma certa apatia que havia em torno da seleção, inclusivamente da parte dos torcedores", revela Amândio de Carvalho, dirigente que entrou na Federação Portuguesa de Futebol (FPF) em 1983 e deixou a vice-presidência em 2011. Conheceu muitos técnicos durante o período e afirma que ninguém o marcou tanto quanto o brasileiro.

A contratação de Scolari, porém, demorou para ser fechada. O técnico era muito cobiçado após ter levado o Brasil à conquista da Copa de 2002. Portugal nem sequer tinha passado da primeira fase e se preparava para receber a Euro 2004. Após a saída de Antônio Oliveira, o comando da seleção ficou com o interino Agostinho Oliveira. Uma solução temporária, mas que se estendia além do desejável, sem que a FPF conseguisse encontrar um sucessor.

Com a Euro chegando, alguns jogadores começaram a mostrar desconforto. Figo chegou a ameaçar não voltar à seleção caso a indefinição continuasse. "Eu tenho o meu prestígio, e se venho aqui para perder prestígio, prefiro não vir. Estou aqui para andar para a frente, mas se vejo que não há um projeto, prefiro não vir", revelou o então maior jogador português numa entrevista coletiva em 15 de outubro de 2002.

O início da "Geração Scolari"

E, de repente, tudo mudou. A FPF conseguiu tirar um grande coelho da cartola. O técnico campeão do mundo. "Foi difícil trazê-lo. Esse trabalho deve-se todo a Gilberto Madaíl [presidente da FPF na época] porque foi ele que conseguiu convencê-lo. Tivemos de encontrar alguns patrocinadores para lhe oferecer um bom contrato (a Nike pagou grande parte do salário de Scolari, que começou ganhando 150 mil euros mensais, algo próximo de R$ 465 mil). Mas, claro, ajudou no acordo o desejo de Scolari em trabalhar logo na Europa e comandar a seleção portuguesa.

Os jogadores agradeceram a contratação. Era o início da "Geração Scolari", como ficou conhecida. Em 2004, a poucos dias do início da Euro, nasce uma nova forma de apoiar Portugal. A torcida abandonou a desconfiança que se tinha instalado após a Copa de 2002 e passou a ter orgulho nas suas cores e a defendê-las perante tudo e todos. Scolari contribuiu para esse "sentimento renovado de orgulho nacional", como recorda o goleiro Ricardo, um dos 23 jogadores que estava ao lado de treinador, na vila de Óbidos, quando este fez um pedido que se tornou histórico: "Gostaria que o país, de alto a baixo, de norte a sul, colocasse a bandeira de Portugal e que mostrasse a todos nós que estamos unidos e que queremos a vitória."

Os portugueses atenderam em massa. Prédios, casas, carros, estradas inteiras, barcos. "Sobre a terra e sobre o mar", como diz o hino. O país vestiu as cores da sua bandeira. Orgulhoso e vaidoso. Nunca se tinha visto nada assim em Portugal. Uma nação inteira unida em torno da sua seleção. A pedido de um brasileiro. "Ele conseguiu que todo esse sentimento saísse cá para fora. Foi muito bonito ver tudo aquilo. Nota-se que os efeitos do apoio de 2004 ainda hoje estão presentes e era bom que perdurassem. A forma de Scolari se comunicar fez toda a diferença", revela Ricardo, que viveu alguns dos momentos mais inesquecíveis da sua carreira ao lado do brasileiro.

Uma dessas páginas de história aconteceu no desempate por pênaltis nas quartas de final contra a Inglaterra. Primeiro, Ricardo tirou as luvas para defender o pênalti de Vassel. Depois, marcou o penálti da vitória. No final do jogo, abraçou Scolari. Os dois choraram. Uma imagem de emoção que correu o mundo. "Ele não tem nada a ver com aquele estilo de treinador frio e distante. Ou aquela imagem do Sargentão com que tinha vindo do Brasil. Com os jogadores sempre foi muito emotivo e caloroso. Nós éramos uma família unida", afirma Ricardo.

Jorge Andrade era um dos elementos dessa família. O zagueiro, então no La Coruña, foi titular em todos os jogos da Euro 2004 e afirma que os jogadores sentiram, desde o início, que Scolari era o homem certo para levá-los o mais longe possível: "Quando entrou para seleção do Brasil, o time estava fora do seu caminho normal e teve muitas dificuldades nas eliminatórias, mas acabou campeã do mundo. Nós sentimos que a sua experiência anterior podia ajudar-nos no nosso caminho e foi isso que aconteceu. Criou-se ali uma família muito unida."

Intuição divina para as substituições

Esse espírito de grupo estendia-se aos jogadores que não eram titulares. Portugal perde o jogo de estreia contra a Grécia e enfrenta a Rússia com a obrigação de vencer. Scolari fez várias alterações. Fernando Couto e Rui Costa deram lugar a Ricardo Carvalho e Deco, que tinham acabado de ganhar a Liga dos Campeões pelo Porto. O onze titular ficou sem dois jogadores consagrados dentro da seleção portuguesa, mas a dupla foi para o banco sem reclamar, como lembra Amândio de Carvalho. "Ninguém estava preocupado com egos. Todos queriam ajudar." Andrade também recorda que os dois foram determinantes mais tarde: "O Rui Costa marcou um gol muito importante contra a Inglaterra e o Fernando Couto entrou muito bem na semifinal contra a Holanda, numa altura em que estávamos ganhando e precisávamos defender a vantagem. Todos foram importantes", afirmou.

Também se costumava dizer que Scolari tinha uma espécie de intuição divina quando fazia substituições. Durante a Euro 2004 foi assim. Antes do jogo contra a Espanha, o brasileiro pediu a Nuno Gomes para ser ele a falar aos colegas durante o abraço coletivo no vestiário. O atacante do Benfica começou o jogo no banco, mas entrou no segundo tempo e fez o gol da vitória. No jogo seguinte, contra os ingleses, Portugal perdia 1 a 0 a poucos minutos do fim. Simão e Postiga tinham saído do banco. Cruzamento de Simão, cabeceio de Postiga. Gol de Portugal.

Parecia um treinador abençoado, mas Andrade destaca também a qualidade de todos os 23 jogadores. Um conjunto de diferentes gerações do futebol português que se encontraram na mesma equipe, o que dava a Portugal grandes opções. "Figo, Rui Costa e Fernando Couto eram os representantes da mítica "geração de ouro" [nome dado ao conjunto de jogadores que foram bicampeões do mundo sub-20, em 1989 e 1991]. Depois, estavam outros de uma geração intermédia, como eu, o Ricardo, o Simão, o Nuno Gomes. A estes ainda se juntavam os jogadores do Porto, que tinham acabado de ganhar a Champions, como o Ricardo Carvalho, o Nuno Valente, o Costinha, o Maniche e o Deco. E foi nesta altura que começou também a aparecer o Cristiano Ronaldo. Tínhamos dois grandes jogadores por cada posição. É muito raro isso acontecer numa seleção", disse.

O segundo pai de Cristiano Ronaldo
 
Foi com Scolari que Cristiano Ronaldo estreou na seleção portuguesa e também seria o brasileiro a dar a braçadeira de capitão a CR7, num amistoso contra o Brasil, disputado em Londres, em 6 de fevereiro de 2007. Vitória de Portugal por 2 a 0. A decisão seria motivada pelo último desejo de um homem à beira da morte, mas não só: "O Carlos Silva, um dos nossos diretores, estava nas últimas horas de vida e exprimiu esse desejo. Disse que gostaria de morrer sabendo que o Ronaldo iria ser capitão, nem que fosse só por um jogo", recorda Amândio de Carvalho.
 
Scolari concordou com o pedido e, ao mesmo tempo, ofereceu um presente ao jovem Ronaldo, que tinha completado 22 anos um dia antes. Mas Amândio de Carvalho lembra que, nessa altura, o treinador brasileiro também sentiu que Ronaldo tinha competências para continuar com a braçadeira: "Desde esse dia nunca mais deixou de ser capitão. Scolari percebeu que Cristiano, embora ainda fosse muito jovem, estava preparado para aguentar essa responsabilidade", afirmou.
 
A relação entre Scolari e Ronaldo foi sempre muito próxima e afetuosa. E tornou-se ainda mais forte devido a uma tragédia. O treinador, acompanhado por Figo, teve a missão ingrata de dar a notícia ao atacante da morte do seu pai, antes de um jogo na Rússia, pelas eliminatórias da Copa do Mundo de 2006. Felipão já lembrou o momento em diversas ocasiões: "Tivemos muita cumplicidade. Ele chorou por muito tempo e o nosso relacionamento ficou mais estreito. Desde esse dia, ele passou a chamar-me de pai. Mesmo com a notícia, ele fez questão de jogar e disse: 'O meu pai gostava que eu jogasse, fez tudo na vida para que eu jogasse futebol.'" Ricardo também lembra que os jogadores só queriam ajudar Ronaldo para que ele suportasse aquela dor da melhor forma: "Foi a nossa união que nos fez sempre alcançar bons resultados."
 
A família criada por Scolari separou-se após a Euro 2008. O treinador assinou com o Chelsea e seguiu para o futebol inglês, mas a aventura durou poucos meses. Desde essa épooca se fala num possível novo casamento com a seleção portuguesa. Depois da Copa logo se verá. Mas há um regresso que já está prometido, como conta Amândio de Carvalho: "Fiquei muito amigo dele e do Flávio Murtosa [auxiliar técnico de Scolari]. São duas pessoas espetaculares. Mantemos contato regularmente e já ficou prometido que, depois do Mundial, eles vêm a Lisboa e vamos comer um belo bacalhau", afirmou.

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