Geração que levou Bósnia à Copa abandonou o país durante guerra nos anos 90
Do UOL, em São Paulo
A façanha de levar a Bósnia pela primeira vez a uma Copa transcende meramente a esfera esportiva. Isso porque a geração que fará o país estrear no torneio da Fifa desenvolveu a identidade nacional em meio aos traumas de uma guerra que atormentou suas famílias e dividiu a antiga Iugoslávia nos anos 90. Boa parte do time que vem ao Brasil deixou a própria nação em busca de um recomeço como estrangeiro, em nome de paz. Hoje, através do futebol, celebram a reconstrução do próprio patriotismo.
Nascidos entre o final da década de 80 e o início de 90, os jogadores da seleção da Bósnia tiveram os primeiros anos da vida marcados por traumas e medo. Diante de uma guerra que assolou o país, entre 1992 e 1995, muitas famílias foram obrigadas a deixar tudo para trás e buscar abrigo em nações vizinhas. Os poucos que ficaram viram parentes e amigos morrerem no conflito mais longo do território iugoslavo.
A guerra da Bósnia foi um conflito armado que opôs sérvios cristãos, croatas católicos e bósnios muçulmanos. A disputa, que resvalou em limpeza étnica, dizimou mais de 150 mil pessoas e fez do então presidente iugoslavo Slobodan Milosevic um célebre criminoso de guerra. O incidente só terminou depois de um acordo que gradualmente dividiu a Iugoslávia em seis repúblicas e duas regiões autônomas: Eslovênia, Croácia, Bósnia-Herzegovina, Macedônia, Montenegro e Sérvia (que ficou com Kosovo e Vojvodina).
Ainda crianças e sem saber ao certo o que acontecia, a maioria dos craques da estreante Bósnia cresceram longe do cenário caótico, saindo da antiga Iugoslávia rumo a um novo país.
Deste evento trágico, o meia Haris Medunjanin é um dos que tem as lembranças tristes. Ele nasceu na capital Sarajevo, palco central da guerra. Aos sete anos, fugiu com a mãe e a irmã para a Holanda. Seu pai ficou na Bósnia e acabou morrendo no conflito.
O goleiro Asmir Begovic nasceu na região de Trebinje. Em 1992, quando a guerra estourou, ele se mudou com a família para a Alemanha. Na época, tinha apenas quatro anos de idade. Em entrevista ao jornal Daily Star, o jogador contou que seus pais deixaram para trás uma vida confortável para garantir sua segurança.
"Tínhamos uma boa vida e, logo em seguida, estávamos na Alemanha, sem saber falar a língua. De repente, tudo se transformou em nada", disse ao jornal britânico. O pai de Asmir também era goleiro profissional e jogava pelo time FK Leotar, enquanto sua mãe estava estudando para ser advogada. "Eles abandonaram suas carreiras. Minha mãe foi trabalhar numa fábrica e meu pai foi para o ramo da construção. Foi como regredir 360 degraus", lembra.
A quase vizinha Alemanha foi um destino comum para a futura geração de jogadores. Além de Begovic, outros três jogadores procuraram refúgio no país. O jovem Ermin Bicakcic se mudou com a família quando ainda era um bebê. Em 2012, precisou renunciar sua cidadania bósnia para manter a alemã, mas conseguiu reverter a decisão em junho deste ano e finalmente foi convocado para defender a seleção da Bósnia-Herzegovina.
O meia Seja Salihovic chegou a Berlim quando tinha sete anos. "Nós estabelecemos uma nova existência para nossa família. Não tínhamos nada e vivíamos sempre com medo de ser deportados", disse em entrevista ao site alemão Spox. Da difícil experiência, ele diz ter tirado uma lição: "acho que a vida dura me ensinou a lutar mais por meus objetivos".
Zvjezdan Misimovic, que também joga como meia, nasceu em Munique. Sua família se mudou para a Alemanha na década de 1960, bem antes da guerra. E apesar de sua nacionalidade, o jogador atuou pela seleção juvenil da Iugoslávia. Em 2004, foi convocado para equipe titular da Bósnia.
Miralem Pjanic, que hoje atua na Roma, nasceu em Tuzla – terceira maior cidade da Bósnia. Com um ano de idade, foi morar em Schifflange, em Luxemburgo. Seu pai, que era jogador profissional da terceira divisão de um time da antiga Iugoslávia, foi quem o incentivou a seguir no futebol.
Senad Lulic passou boa parte da infância na Suíça – onde a ele se refugiou com os pais durante o conflito dos anos 90. Já a família do atacante Vedad Ibisevic permaneceu na Bósnia até o ano 2000, quando também resolveram se mudar para a Suíça, em busca de uma realidade melhor no pós-guerra. Por lá ficaram apenas dez meses, seguindo para St. Louis, nos Estados Unidos.
Seleção da Bósnia-Herzegóvina de Futebol
ATACANTE QUASE FOI ATINGIDO POR BOMBA EM CAMPO DE FUTEBOL
Edin Dzeko é o jogador mais bem-sucedido da Bósnia e é a estrela da equipe. Ele teve uma infância complicada – sua casa foi destruída e o futuro atacante do Manchester City quase foi atingido por uma bomba em um campinho de futebol, quando garoto. Morou em um flat apertado e perdeu entes queridos durante a guerra, mas não desistiu de seu país. Além de manter um apartamento em Sarajevo, Edin hoje também faz trabalhos sociais na região.
O capitão da seleção, Emir Spahic, também não saiu do país. Ele nasceu na Croácia, mas começou sua carreira em times bósnios. Uma curiosidade familiar é que o zagueiro é primo de primeiro grau de Dzeko. Spahic só saiu da Bósnia após iniciar sua carreira no futebol. Já passou por Rússia, Croácia, Espanha e agora atua na Alemanha, no Bayer Leverkusen. Diferente do também zagueiro Avdija Vrsajevic, que não saiu da reguçai da antiga Iugoslávia e hoje joga na Croácia.
Estes 11 jogadores listados foram titulares na partida contra a Lituânia (no dia 15 de outubro) e, nesta ocasião, conseguiram uma vaga inédita para o Mundial de 2014.
Esta é a primeira vez que a Bósnia participa de uma Copa do Mundo, mas não é a única nação da antiga Iugoslávia a conseguir esta façanha. Antes, a Croácia, que também se classificou, já participou de três torneios – em 1998, na França; em 2002, na Copa da Coréia do Sul e Japão; e em 2006, na Alemanha.
A seleção sérvia, sucessora da equipe Servo-Montenegrina de Futebol, participou da Copa 2010, na África do Sul, mas não passou da primeira fase.