Herói dos EUA, Howard tem síndrome, tiques e já foi tido como "retardado"
Do UOL, em São Paulo
Se tivesse sido escrita por um roteirista de Hollywood, a história dos Estados Unidos na Copa de 2014 talvez tivesse sido classificada como "clichê" ou "repetitiva". Um herói que passou por provação e foi desacreditado durante anos; duelo com um rival mais badalado; atuação destacada do protagonista e a esperança de um desfecho feliz; uma derrota apertada, digna, que não abala o moral da equipe mais fraca: todos os elementos estiveram na trajetória norte-americana. Um dos responsáveis por isso é o goleiro Tim Howard, 35, que deixou o Mundial como o grande nome da seleção. A despeito da eliminação nas oitavas de final, a competição representou uma vitória pessoal para o jogador que tem síndrome de Tourette diagnosticada desde os 11 anos e já foi chamado de "retardado" por causa disso.
A Bélgica disparou 38 chutes contra a meta dos Estados Unidos nas oitavas de final da Copa de 2014. Howard teve de fazer 16 defesas, maior número de um goleiro em uma partida de Mundial desde que essa medição começou a ser realizada. A atuação transformou o jogador em herói nacional, com direito a entrevistas, ligação do presidente Barack Obama e uma série de brincadeiras em redes sociais.
"Nada disso realmente importa para mim porque é o meu papel. Defender é parte do meu trabalho. Machuca quando perdemos, e não importa quantas defesas eu tenha feito", disse Howard em entrevista coletiva depois do jogo contra a Bélgica – os Estados Unidos perderam por 2 a 1 na prorrogação.
A frustração de Howard com a eliminação é compreensível, mas o goleiro não tem razão para lamentar sobre a Copa. Ao contrário: a competição serviu para aumentar drasticamente o status do jogador que atualmente defende o Everton (Inglaterra). E isso é algo muito grande para quem tem uma história de vida como a dele.
Howard tem síndrome de Tourette, uma doença neurológica caracterizada por tiques e movimentos involuntários. No caso do goleiro, os aspectos mais evidentes são gagueira, piscadas frequentes e contrações na região do rosto.
A doença começou a se manifestar quando o goleiro tinha apenas dez anos. Nascido em 1979 em Nova Jersey, Howard é filho de uma imigrante húngara e de um motorista de caminhão afro-americano. Os pais do goleiro se separaram quando ele tinha três anos, e sete anos depois ele começou a desenvolver comportamentos compulsivos. "Havia rotinas e padrões que tinham de ser seguidos. Ele tinha de vestir as roupas na mesma sequência em todos os dias", exemplificou Esther, mãe do atleta.
Um ano depois, quando as obsessões já eram mais assíduas, um médico diagnosticou a síndrome de Tourette. "Até os 15 anos, foi um caos de diferentes tiques. Eles eram bem fortes", explicou Howard à revista "Neurology Now".
Para combater a doença, Howard chegou a tentar soluções como tomar café, mas a bebida aumentou ainda mais as crises de ansiedade associadas à síndrome. O goleiro evita remédios por medo de isso afetar seus reflexos. Até hoje, os tiques e os movimentos involuntários da face do atleta podem ser notados durante os jogos.
"Eu não escondo isso. Acontece o tempo todo, sem nenhum aviso, e os tiques ficam ainda mais evidentes quando estou perto de um jogo importante", contou Howard à revista alemã "Spiegel".
Doença já fez Howard ser motivo de chacota
Em 2003, Howard trocou a MLS (liga profissional de futebol dos Estados Unidos) pelo gigante Manchester United. O jornal "Guardian" anunciou que a equipe inglesa havia contratado "um goleiro com problema cerebral". O "Independent" chamou o norte-americano de "doente". A imprensa europeia teve uma linha parecida, com adjetivos pejorativos que chegaram até a "retardado".
A torcida do Manchester United também se aproveitou da doença de Howard. Uma das características possíveis para quem tem a síndrome que acometeu o goleiro é o descontrole verbal. O norte-americano não tem esse sintoma, mas os fãs da equipe inglesa criaram um grito que o ironizava por não conseguir controlar palavrões.
Howard nunca reclamou do tratamento que recebeu quando foi contratado. Ele só lamentou o que aconteceu depois, quando deixou o Manchester United – o norte-americano foi emprestado ao Everton em 2006. "Foi brutal", sentenciou. Na época, a imprensa britânica disse que ele havia perdido espaço na equipe porque não conseguia controlar os sintomas da doença.
"Eu acho que é algo que você aprende com o tempo: não deixo que essas coisas me abalem hoje, sejam elas boas ou más. Eu não ligo, e simplesmente sigo em frente", relatou Howard ao "Washington Post".
Esporte do goleiro quase foi outro
Howard começou a jogar como goleiro por ser alto, mas essa característica quase levou o norte-americano a outra modalidade. Ele também foi atleta de basquete até a adolescência – atuava como pivô.
O fim precoce da carreira no basquete deve-se à ascensão de Howard como goleiro. No entanto, ele segue ligado ao outro esporte até hoje, a ponto de ter sido declarado membro honorário dos Harlem Globetrotters.
Além do basquete, Howard ama tatuagens. O jogador tem vários desenhos pelo corpo, que vão desde os anéis olímpicos até rostos de crianças. Ele já usou isso para exercer a porção ativista em uma campanha contra o uso de casacos de pele.
Outra característica bem evidente em Howard é a religião. O goleiro é católico fervoroso e já abordou esse tema em entrevistas.
Em um jogo do Campeonato Inglês, Howard aproveitou uma desatenção do goleiro do Bolton e chutou de longe para fazer um gol para o Everton. Depois, disse em entrevista coletiva que havia ficado mal pelo companheiro de posição: "Foi constrangedor".
Para o roteiro de redenção de Howard ser perfeito na Copa de 2014, só faltou ele ter feito um gol contra a Bélgica. Mas se ele já foi herói apenas pelas defesas, é difícil imaginar o que aconteceria com o norte-americano nessa hipótese.