Escola de futebol tenta renascer após tragédia e morte de crianças em Terê

Luiza Oliveira e Pedro Ivo Almeida

Do UOL, em Teresópolis (RJ)

Manoel Antônio de Oliveira da Silva fala. Sem parar, atropelando as palavras. Não por extroversão ou espontaneidade. "Seu Clóvis", como é conhecido no bairro Campo Grande e por toda Teresópolis, fala para esquecer a dor entre seus pensamentos. Com a força dos próprios braços, desenterrou seus filhos dos escombros, da lama para, em seguida, enterrá-los para sempre junto com seus sonhos.

A força devastadora das chuvas que assolaram a região serrana do Rio em janeiro de 2011 levou ainda outra parte de "Seu Clóvis". Uma parte social, esportiva. Uma parte que combinava muito com a cidade sempre conhecida por ser a casa da seleção brasileira. Hoje, ele é a cara da região: um misto de alegria com o futebol e dor pela tragédia.

A mesma tragédia que matou mais de 20 parentes de Clóvis tirou a vida também de outras centenas de crianças que amavam o esporte. Assim, teve fim o projeto de uma escolinha de futebol comandada por ele a poucos quilômetros de sua casa.

"Não tinha mais como termos as aulas ali. Tínhamos campo, mas não tínhamos as crianças. Em uma turma de quase 80, sobrou meia dúzia. Todo mundo morreu na chuva. Acabou tudo", recorda, como os olhos marejados.

O cenário que mais lembrava um campo de guerra não sai da cabeça de Clóvis. O gramado do Posse Futebol Clube, que outras vezes recebia os sonhos de uma geração, foi utilizado como depósitos de mais de 300 corpos retirados entre escombros, lama e pedras que desceram pelas encostas.

"É uma coisa horrível. Nem consigo falar direito. Prefiro olhar para frente e pensar que posso retomar aquelas aulas. Minha missão agora é essa. Se Deus levou todo mundo e me deixou aqui, é porque tenho uma missão. E eu quero fazer o bem, passar a esperança para outras crianças".

A solidariedade faz seu Clóvis ter forças para seguir em frente. Mas é o futebol que faz o sorriso voltar a se abrir. Com a bola nos pés, ele deixa para trás o fardo tão pesado que a vida lhe deu. Brinca, faz embaixadinhas, marca de pênalti, chuta no ângulo. Volta a ser leve.

Por algum instante, os maiores problemas da vida são a bola murcha e o joelhos doloridos que denunciam os 57 anos e o longo período dedicado ao futebol amador.

Até lembra o seu Clóvis de anos atrás que dava aulas de futebol para as crianças no campo do Posse. "Era uma festa. Todo mundo adorava. Quando alguém se machucava, todo mundo parava para ajudar".

Agora, ele tenta retomar a escolinha. Ele e mais três amigos trabalham para reunir novas crianças e buscam recursos para colocar de pé o projeto. Até os uniformes de treino foram perdidos nas enxurradas.

Por isso, faz um apelo e pede ajuda para comprar material esportivo e lanche para os atletas. Aos poucos, o esforço vem sendo recompensado e o campo volta a ter vida. Os fins de semana já estão ficando cheios de adolescentes interessados em aprender futebol.

A facilidade para descrever os bons momentos com as crianças que perderam seus sonhos na chuva contrasta com a dificuldade em relembrar e encarar outra situação. Seu Clóvis desabou ao voltar ao bairro Campo Grande, na esquina da rua em que morava e que hoje virou um depósito de lama e lixo.

Em um discurso carregado de dor e emoção, ele conta como perdeu tudo. A casa, três filhos, o neto, os sonhos.

"Perdi a minha filha, o meu neto, meus dois filhos homens. Acabou o meu sonho, perdi um filho com 29, 27, uma com 24, um netinho com dois anos. Todos moravam comigo, eu era pai e mãe para eles. Eram o meu bem mais querido. A avalanche levou tudo lá para baixo. Os bombeiros chegara aqui e não acharam. Quando eu tirei o mais novo, eu quase morri. Ele virou o rosto para o meu lado, quando morri do coração".

A dor espiritual se tornou física. Depois de receber a reportagem do UOL Esporte na antiga residência, ele sentiu-se mal e quase chegou a ser hospitalizado. "Fui lá no Campo Grande um dia e passei mal no outro. Não dá mais. É muito duro. Pensei que fosse morrer desta vez", contou.

"Ele se emocionou demais. Chorou e nos assustou. Achamos que teríamos que levá-lo para o hospital. Ele é muito forte e superou a tragédia, mas ter que voltar lá e comentar foi difícil", disse o amigo Flávio Carreiro, que conheceu Clóvis na Avit (Associação das vítimas das chuvas de Teresópolis).

Mesmo com toda a dor, Clóvis dá uma lição de vida. Comemora com as duas filhas que restaram e os quatro netos. "A vida tem que continuar, Deus levou meus filhos e me deixou aqui. Algo ele separou para mim".

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