Operários da madrugada no Itaquerão driblam sono e bronca da mulher por 'orgulho corintiano'

Luiza Oliveira, em São Paulo

A voz suave de Paula Fernandes no som, o cair da noite, os últimos lembretes na palestra sobre segurança do trabalho e o ritual de vestir o capacete e as botas mostram que o turno noturno dos 'guerreiros' do Itaquerão começou. Até as 5h, serão mais dez horas de trabalho árduo, porém compensador. Além de um pouco de sono driblado pelo café e jogo de cintura para matar a saudade de casa e as reclamações da mulher.

CENAS DA ROTINA NOTURNA NA OBRA

  • Leandro Moraes/UOL

    Operários jogam futebol na quadra de grama cinza

  • Leandro Moraes/UOL

    Jantar é servido à meia-noite. Arroz, feijão, carne e batata frita e sobremesa compõem o cardápio

  • Leandro Moraes/UOL

    Todos trabalham de mangas compridas, botas, capacetes e equipamentos de segurança

Essa é a rotina de 250 operários que trabalham 10 horas diárias seis vezes por semana. Tudo para colocar de pé mais que um estádio, o sonho dos corintianos e o palco do Brasil na abertura da Copa do Mundo, onde desfilarão os principais chefes de estados e os ídolos da bola.

Os sonhos somados às horas extras e aos adicionais noturnos movem os trabalhadores, quase todos corintianos, que esperam ver in loco a inauguração e já apontam onde querem estar em meio a vigas, pastilhas e concretos. "Não vou aguentar. É muito orgulho", resume o técnico de segurança do trabalho Eliaquim Silva, com os olhos cheios d'água.

O jovem de 18 anos está há três meses na obra, tempo suficiente para uma grande mudança em sua vida. O corte moicano de Neymar não existe mais a pedido do chefe, assim como os hábitos adolescentes. Com espírito de liderança, dá ordens, conquistou o respeito dos funcionários e se tornou o responsável pela montagem do time de futebol de sua área de trabalho.

O 'Ruim Madrid' é considerado um dos favoritos a vencer o Brasileirinho, campeonato que começa em maio no Itaquerão. Assim como seu ídolo Neymar, joga no ataque, é marrento e adota o lema 'ousadia e alegria'. "Estão perdidos", provoca. "De mim você não passa", responde o carpinteiro da obra e zagueiro do Guerreiros da Noite.

Ao lado de Eliaquim, quem completa a dupla de ataque é Wakson Santos, um dos únicos palmeirenses do canteiro. Para ele, profissionalismo está em primeiro lugar, tanto que vem se destacando e já acumula novas responsabilidades na área de sinalização, mas não perde a chance de tirar sarro. "O Palmeiras vai fazer muitos gols aqui em cima do Corinthians".

O passado baladeiro - que ele confessa às vezes sentir falta, é camuflado pela postura séria, mas ainda desperta o ciúmes da namorada Luana. No início, ela chegou a seguí-lo até a obra por desconfiança. "Ela não acreditava que eu trabalhava de madrugada e achava que eu estava na balada. Uma vez a vi passando no ônibus, isso deu um barulho. Tem que ter confiança. Adoro esse horário é ótimo porque não saio na noite e economizo dinheiro", conta ele, interrompido pelo toque do celular. Era Luana.

QUEM NÃO AGUENTA, PEDE PARA SAIR

Se o passar mais rápido das horas, a temperatura amena e os benefícios financeiros motivam os peões da madrugada, há quem também não se adapte ao trabalho noturno. Alguns deles reclamam do cansaço e pedem para mudar de horário.

Um carpinteiro alegou que não conseguia dormir durante o dia e, por isso, era assolado pelo cansaço e não executava bem sua função. Por isso, foi transferido para o horário intermediário de 13h às 23h.

É o caminho que Cesar Barbosa, responsável pela área de topografia, pretende percorrer. Ele sofre com a distância da mulher Fernanda e do filho ainda bebê, André Murilo, e com as dores na panturrilha e o desgaste no pé. "Não descanso bem e o dia não rende. Acordo já na hora de vir trabalhar", relatou.

No Itaquerão, as mulheres representam um dilema muito maior do que enfrentar a madrugada e seus mitos, apesar dos dois assaltos que aconteceram desde o início das obras. Por isso, andam em grupos nas proximidades do terreno e usam os ônibus disponibilizados pela construtora que saem em três horários (5h05, 5h15 e 5h25) para a estação de metrô de Itaquera.

A grande maioria prefere o horário pouco habitual. Acham que o tempo passa mais rápido e comemoram o frescor da noite, bem diferente dos dias ensolarados em que é preciso conciliar o calor com calças, mangas compridas, luvas, botas e capacetes.

Os passatempos são garantidos para espantar o sono e o mais comemorado é a 'perua do café'. É ela quem circula por toda a obra de 2h até às 4h e dá um 'novo gás' na calada da noite. 

MULHER SOLITÁRIA DRIBLA MACHISMO

Das 62 mulheres que trabalham na obra, Sandra Barbosa é uma das duas que fazem o horário noturno. Guerreira, aprendeu não só a fazer as pastilhas de revestimentos mas, principalmente, a aguentar as provocações machistas dos colegas.

"Um deles disse para mim. 'Se fosse minha mulher não trabalhava a noite'. Mas eu não deixo barato, fui com o pé no peito. Ainda bem que eu não sou sua mulher, né? Ele ficou quieto", disse ela, que já trabalhava na madrugada na recepção de um hospital e é mãe de Vinicius, de 21 anos.

O jantar é servido pontualmente à meia noite com comida farta, que inclui carne, arroz, feijão, batata frita e dois tipos de sobremesa. Pouco depois, nada mais merecido que uma hora de lazer no 'Recanto do Guerreiro'.  Um espaço para pôr o papo em dia, jogar dominó e esbanjar talento na quadra de futebol society recém-inaugurada. A curiosidade é que a grama é cinza porque cores de rivais estão proibidas.

A alusão ao Corinthians está mesmo em todos os lugares. Logo na entrada, se vê a inscrição 'Estádio do Corinthians. Mundial 14'. No refeitório, o tapete tem o escudo do clube e o gavião, esculpido com terra por um operário, chama a atenção no Recanto. Mas é no almoxarifado que a homenagem é mais emblemática. Sócrates, Marcelinho e Ronaldo dão nomes às prateleiras. "Falta o Neto", reclama Ivaldo Pereira.

Ele cuida sozinho do local, enquanto a esposa Tereza dorme também solitária em casa. Ivaldo diz que a construção civil é um vício, alimentado há 18 anos ao custo de muitas reclamações da parceira. "Quem bebe água em capacete, vicia. Sou apaixonado por isso aqui e a mulher tem que se acostumar. Mas se eu contar como ela reclama, você me xinga. Posso nem falar. Ela fala muito, como diz o Tite", brincou, fazendo o gesto imortalizado pelo professor.

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