Espanha se vai, mas dá ao tiki-taka final diferente do Carrossel Holandês

Fernando Duarte e Guilherme Palenzuela

Do UOL, no Rio de Janeiro e em Curitiba

Foi-se a seleção espanhola que dominou o futebol mundial a partir da imposição de um estilo levado ao extremo a partir de 2008. A eliminação inesperada na fase de grupos da Copa do Mundo de 2014 pôs fim à geração de Xavi e Iniesta, coração do tiki-taka que evoluiu lado a lado no Barcelona e na Espanha, mas não necessariamente acabou com o sistema de jogo, evolução do Carrossel Holandês de 1974, que só sobreviveu enquanto Johan Cruyff esteve em campo. É o que se pensa de Pep Guardiola a Zico.

O técnico holandês Rinus Michels é o ponto de partida da história. Inaugurou o futebol total – o carrossel – no início dos anos 70, no Ajax, com ideias adaptadas da Hungria de Ferenc Puskás, da década de 1950. Com Cruyff em campo, revolucionou o futebol em um esquema de jogo com múltiplas trocas de posições entre os atletas, pouquíssima rigidez tática e no qual os 10 jogadores de linha participavam de todas as fases do jogo. Enquanto comandou a Holanda de 1974, que mostraria o carrossel para o mundo, plantou na Espanha a semente da qual brotaria o tiki-taka. Treinou o Barcelona por sete temporadas entre 1971 e 1978, e teve Cruyff executando suas orientações nas três etapas: Ajax, seleção e Barça.

Mas o Carrossel Holandês virou história para contar quando Michels e Cruyff abandonaram comando e protagonismo em campo do Barcelona, em 1978. O estilo que parecia uma nova tendência, algo dominante e claramente mais evoluído que outros sistemas de jogo pensados até então, mostrou-se dependente de um determinado grupo de jogadores, dotados da técnica de múltiplos fundamentos, do condicionamento físico para tantas transições e da noção tática para rodarem. Nunca mais houve reprodução fiel. E é aí que o legado do tiki-taka deve se mostrar diferente.

"Condenar um sistema que trouxe tanto sucesso para a Espanha e Barcelona é burrice. O erro que a Espanha cometeu em 2014 foi não ter feito ajustes depois de o resto do mundo ter começado a se adaptar ao estilo de jogo deles. Houve também problemas de forma física e técnica com os jogadores, mas fica muito fácil as pessoas esquecerem que o futebol é momento e muda de repente", analisa o ex-meia Zico. O craque fala sobre o "esquecimento" das glórias como quem sabe que ficou perto de entrar para a história com um time que seria outro marco tático no futebol: a seleção brasileira de 1982, de Telê Santana, que tinha um pouco da Holanda de Michels e Cruyff.

Do Carrossel ao tiki-taka, houve um processo evolutivo para que o estilo se tornasse mais abrangente e fácil de aplicar. Não por coincidência, quem fez brotar a semente plantada por Rinus Michels no Barcelona foi Johan Cruyff, agora como treinador, em 1988. Ficou oito anos na função, tempo necessário para fazer todo o clube ser moldado para funcionar em um estilo. Deu lugar ao também holandês Louis Van Gaal – este mesmo, atual técnico da Holanda de Arjen Robben, que estraçalhou o tiki-taka de Xavi e Vicente Del Bosque por 5 a 1 em Salvador –, que, naturalmente, deu continuidade à evolução do estilo. Lembre-se da semente da Michels.

A linha evolutiva que vai acabar em Pep Guardiola marcou as seguintes mudanças: estava óbvio, nas mãos do próprio Cruyff, que o carrossel era inaplicável sem determinado grupo de atletas. Para que isso funcionasse, foram cada vez mais reduzidas as transições e a fluidez de Rinus Michels. Era impossível encontrar zagueiros que participassem tão bem da composição ofensiva, ou atacantes que fizessem o inverso. Além disso, a evolução no preparo físico do esporte, de modo geral, foi um golpe duro no carrossel. Com atletas tão bem condicionados por toda a parte, o time que transitava mais pelo campo, trocando de posições, se cansava mais.

Escolheu-se, então, fazer a bola transitar em vez dos jogadores. A bola corre mais e não cansa. Ideia aperfeiçoada por Frank Rijkaard – mais um holandês – técnico que herdou o Barça de Van Gaal. Ainda não se usava o termo tiki-taka, mas ficou claro que o futebol que praticava o Barcelona era uma derivação da escola holandesa, ainda sem um rótulo latente enquanto evoluía.

Quem marca o tiki-taka como estilo é Pep Guardiola, a partir de 2008, enquanto a seleção espanhola de Luis Aragonés faz o mesmo ao conquistar a Europa pela primeira vez. E quem conhece bem o treinador concorda que, diferentemente do Carrossel, o tiki-taka não morre no Brasil em 2014: "O que morreu foi uma geração, não um sistema. Novos jogadores podem muito bem dar continuidade ao tiki-taka, que já provou ser algo mais do que um sistema simplesmente atrelado a uma geração. A ideia de movimentação e domínio de bola não fica invalidada. Claro que precisaremos ver o tiki-taka evoluir, mas a resposta não é simples e nem mesmo Pep Guardiola parece ter a resposta. Me parece claro que o uso de espaços e a intensidade na marcação precisam ser trabalhadas, mas há novos jogadores prontos para dar prosseguimento ao trabalho", diz Guillem Balague, jornalista espanhol autor da biografia de Guardiola, Another Way of Winning (Outra maneira de ganhar).

Guardiola, como jogador do Barcelona, foi treinado por Cruyff e Van Gaal. Já era técnico do time B do clube quando Rijkaard montou seus melhores times. E foi quem finalmente encontrou a perfeição do plantado por Rinus Michels e moldado por todos os outros holandeses que sucederam. Acabou de vez com a transição da dupla de zaga e do primeiro volante, encurtou ainda mais o comprimento do time em campo, implementou passes mais curtos e – o mais importante – acabou com a posição de centroavante. Foi buscar na Hungria de 54 a influência e implementou o tão antigo mas só hoje famoso falso 9. Deu a sorte, também, de este ser o argentino Lionel Messi, o melhor jogador de sua geração.

A maior facilidade de se aplicar o tiki-taka do que o carrossel motiva espanhóis a pensarem o futuro com a mesma identidade na seleção mesmo sem Xavi e Iniesta. O discurso é protocolar para os jogadores que, desconsiderando os pedidos de Xabi Alonso e Cesc Fàbregas após o desastre contra a Holanda, falaram que o sistema será mantido nos próximos anos. Palavras que não significariam tanto se a impressão da imprensa espanhola não fosse exatamente a mesma, de um modo geral;

"O tiki-taka se marcou pelo Xavi? Sim. É possível jogar sem ele? Perfeitamente. Pode se jogar com Thiago Alcântara e Koke. O tiki-taka pode ser feito com qualquer jogador. O melhor modelo foi com Xavi, agora não foi tão bem porque que ele já está pior, se vê. Mas se pode jogar com qualquer jogador, como se joga na sub-15, na sub-18, na sub-21 da seleção espanhola", analisa o jornalista espanhol Javier Matallanas, diretor adjunto do Diário As, que acompanhou a Fúria nos três jogos da Copa do Mundo no Brasil, nas últimas semanas.

A difusão do estilo, se não depende dos jogadores que estão em campo, como defendem os relatos, ainda parece depender do treinador que o aplica. Basta ver que na história tudo dependeu do semeado por Rinus Michels, e ficou restrito ao Barcelona, a partir de Cruyff, Van Gaal, Rijkaard e Guardiola. Apenas Luis Aragonés e Vicente Del Bosque, na seleção espanhola, com o respaldo dos atletas do Barça, conseguiram ter sucesso. Fora da Espanha, agora o Bayern de Munique, com Guardiola, faz o mesmo.

O estilo ainda não passa perto do futebol brasileiro, que demorou 30 anos para readotar minimamente o desenho do 4-2-3-1 de Telê Santana da seleção de 1982, com Zico, Sócrates, Cerezo e Falcão. No interior de São Paulo, no entanto, há quem mais se aproxime do estilo no Brasil. É o técnico Fernando Diniz, do Guaratinguetá, que fez do Audax Osasco a grande sensação do último Paulistão. O ex-meio-campista iniciou a carreira como técnico em 2009 e sempre adotou estilo de jogo com passes curtos, muitas trocas de posições e domínio da posse de bola. Prefere não usar o rótulo do tiki-taka, e defende – como prova viva – que o estilo não depende de craques.

"Acho que dá. Quando cheguei ao Audax, fui contratado dia 27 de dezembro de 2013. Tinha 20 dias para treinar, e no meio disso tinha Ano Novo e Natal. Não contratamos ninguém e conseguimos jogar desse jeito. Onde pegava mais? Nos zagueiros. Eles teriam que percorrer mais distância, jogar com mais risco. Foi um trabalho diário de resgatar a pureza dos caras. Tinha que convencê-los de que um dia eles foram os melhores da escola, os melhores da rua, para que conseguissem assumir esses riscos. E os caras começam a fazer coisas que eles não faziam mais. Eles começam a sentir prazer em jogar futebol. Tudo isso parte de muito treino", explica Diniz, que desenvolveu a forma de implementar o sistema a partir de sua formação como psicólogo, iniciada após a aposentadoria como jogador e concluída nos primeiros anos como técnico.

E Diniz não fica na teoria. No último Paulistão, o Audax marcou 23 pontos. Um a menos que o Corinthians e quatro a menos que o São Paulo. O clube, presidido pelo ex-volante Vampeta, fez campanha muito melhor do que o esperado, com jogadores que não se aproximam em nada da técnica mostrada pelos craques espanhóis nas mãos de holandeses. "O sistema depende de jogadores bons como outros, mas não necessariamente craques. Não acho que a Espanha tenha muitos craques. o sistema é mais forte que a qualidade de jogadores", afirma Diniz.

A seleção espanhola agora iniciará ciclo de renovação. Certamente nunca mais será a mesma de Xavi Hernández, que a levou ao topo do Mundo com Vicente Del Bosque a partir de um estilo que superou os demais. Mas poderá manter sua identidade em campo com outros nomes.

Veja também



Shopping UOL

UOL Cursos Online

Todos os cursos