Iker Casillas: o santo pagão que ergueu e derrubou a Espanha
Guilherme Palenzuela
Do UOL, em Curitiba
Passou pelas mãos de Iker Casillas a desastrosa e inacreditável campanha da seleção espanhola na Copa do Mundo de 2014. Literalmente. Aos 33 anos, o mortal São Iker, canonizado aos 21 pelo povo espanhol, ficou marcado como grande culpado por derrubar a taça que ele próprio levantou na África do Sul, em 2010. Falhou demais. E chocou um país que se acostumou a considerá-lo uma santidade por impedir em diversos momentos que a seleção espanhola morresse na praia, como tantas vezes na história morreu. Mas Casillas nunca foi santo. Nunca foi porque nenhuma história religiosa seria pitoresca o bastante para ser escrita a partir de um frasco de perfume quebrado – e fatal –, e porque ser comparado a santo não interessaria a uma pessoa que não é religiosa, como ele não é.
Casillas tinha apenas 16 anos quando foi chamado pela primeira vez para uma partida oficial do Real Madrid. Foi em novembro de 1997, em jogo contra o Rosenborg, da Noruega, pela Liga dos Campeões. Sua jornada para se tornar um dos maiores ídolos da história do clube poderia ter começado ali, beneficiado pelas lesões do alemão Bodo Illgner e do espanhol Pedro Contreras, mas teve de ser adiada não fosse a presença do terceiro goleiro, o compatriota Santiago Cañizares. E é a partir daí que se desmonta o santo: não poderia, jamais, existir história de canonização com uma vingança tão cruel no destino.
O São Iker nasceu no dia 16 de junho de 2002. Casillas, com 21 anos, titular improvável da seleção espanhola, defendeu um pênalti durante a partida e mais duas cobranças na disputa de penalidades contra a Irlanda, pelas oitavas de final da Copa do Mundo na Coreia do Sul e no Japão, após empate por 1 a 1. Tão jovem, foi o responsável por fazer a Espanha escapar de mais um fracasso no futebol – à época tão comum para os espanhóis. Mas tudo isso só aconteceu graças àquela que deve ser a lesão mais bizarra da história do esporte: Casillas seria reserva naquela Copa, não fossem os estilhaços de um frasco de perfume derrubado pelo titular Santiago Cañizares a dias da viagem com a seleção. Um corte no pé tirou da Copa aquele que em novembro de 1997 impediu a estreia de Casillas pelo Real Madrid, e abriu caminho para São Iker. Que certamente não é o santo dos vaidosos…
Casillas poderia ter chegado ainda mais longe na Copa de 2002 não fosse a violação cometida pelo trio de arbitragem do egípcio Gamal Ghandour, que colocou a Coreia do Sul – dona da casa – na semifinal. Mas, do frasco de perfume, Iker iniciaria grande história. Ganhou o respaldo de um país inteiro. Agora não poderia perder o posto de titular do Real Madrid, muito menos da seleção.
Apesar de ter convivido desde muito jovem com o glamour que o futebol proporciona, Casillas sempre cultivou o perfil reservado. Totalmente reservado. O goleiro se incomoda demais com o assédio de fotógrafos quando está fora dos treinos e jogos. Já chegou a citar a morte de John Lennon para argumentar contra a exposição indevida. Não entende quais são os motivos que o impedem de ter alguma privacidade fora de casa. Ele pouco fala, não é visto longe dos campos e não esbanja o dinheiro que ganha no Real Madrid. É conhecido por gastar pouco e guardar muito. Investe com imóveis boa parte do que recebe. Porém, todo o perfil retraído foi colocado em prova quando Iker e a seleção espanhola levantaram a taça da Copa do Mundo, em 2010 na África do Sul. A imagem do título foi o beijo do capitão na repórter Sara Carbonero, sua namorada. Nascia o novo casal nacional. O Neymar/Bruna Marquezine deles. O novo tema mais legal do momento. E isso o incomodou.
Foi quase uma união real. O capitão da Fúria que finalmente deixou de perder e conquistou o mundo com um estilo de jogo dominante – a Espanha do Xavi – anunciou com um beijo improvável a união com uma bela jornalista, famosa pela carreira na televisão, em um dos momentos de maior êxtase da história do país. Iker era o príncipe. Sara, a princesa. Começaram as incontáveis fotos do casal nos meses seguintes. Vídeos. Onde jantaram, para onde viajaram, o que vestiam, se abraçaram, se beijaram… se casaram! Não, não se casaram. Aquilo que praticamente todos os veículos de imprensa espanhóis publicaram em março de 2012 não aconteceu. "Iker e Sara vão se casar em julho", disseram. Mas o santo foi pagão. O casal dispensou cerimônia religiosa, passou a morar junto e teve o filho Martin. Assim, sem o tal caráter religioso.
Iker Casillas nunca foi batizado na igreja. Também nunca se comungou. O goleiro se diz cristão, apesar disso. Não relaciona de forma tão próxima seu lado espiritual da igreja católica, no entanto.
O perfil bom moço de Casillas também se destacou em outros momentos isolados quando mais jovem. Em 2003, enfrentaram-se Real Madrid e Bayern de Munique. O espanhol, mesmo já considerado santo, quis sair da partida com a camisa do ídolo máximo de sua infância, o alemão Oliver Kahn. Mas não conseguiu. Kahn, que não parou Ronaldo na final da Copa de 2002, mesma na qual São Iker nasceu, negou o pedido. O jovem Casillas, então, criticou: chamou Kahn de mal-educado – Iker não sai do perfil polido nem ao disparar críticas. Recebeu dias depois a camisa que queria, com um pedido de desculpas.
Assim como jogou contra Oliver Kahn, Casillas viu passar a seu lado – na seleção espanhola e no Real Madrid – diferentes gerações de craques. No clube, viu passar Fernando Hierro, Roberto Carlos, Fernando Redondo, Clarence Seedorf, Davor Suker, Fernando Morientes, Luis Figo, Zinedine Zidane, Ronaldo, David Beckham, Robinho, Fabio Cannavarro, Marcelo, Wesley Sneijder, Arjen Robben, Sergio Ramos, Xabi Alonso, Kaká, Cristiano Ronaldo, Ángel Di Maria, Luka Modric, Gareth Bale… A história que vimos o Real Madrid construir é a história que Iker Casillas construiu. Só não alcançou o posto de maior ídolo da história do clube porque jogou com o atacante Raúl González, inalcançável.
Na seleção, o que Iker fez o ajudou a não sofrer tanto com o desastre de 2014, no Brasil. O taça que ele levantou em 2010 se transformou numa redoma para agora, que o protegeu. Fosse Pepe Reina ou David De Gea – os dois reservas –, talvez nunca mais fossem convocados para defender a seleção após tantas falhas. A pressão popular seria enorme. Depois do 5 a 1 contra a Holanda no qual o capitão teve culpa em pelo menos dois dos gols sofridos, houve dedos apontados a diversos titulares, ao sistema de jogo, o tiki-taka, e Casillas foi preservado.
A carreira de Iker, pelo menos em alto nível, hoje precisa de uma reviravolta. Ele precisará decidir agora, neste início de temporada em seu clube e neste início de novo ciclo da seleção, qual será seu objetivo profissional. Casillas não falhou só nos dois jogos pela seleção, mas também no último pelo clube. Uma falha na final da Liga dos Campeões quase deu ao Atlético de Madrid, maior rival do Real, o inédito título – o mais importante do continente. Foi salvo pelo companheiro Sergio Ramos, que empatou nos acréscimos, e por Gareth Bale, Marcelo e Ronaldo, que viraram o jogo. Pior que isso: nos últimos dois anos, o goleiro atuou em cerca de apenas metade das partidas que o clube disputou, e cada vez mais tem ocupado o banco de Diego López. O primeiro a tirá-lo foi o português José Mourinho, de forma abrupta. Com o italiano Carlo Ancelotti, jogou menos ainda. Mas entendeu o rodízio, implementado dessa vez de forma mais gentil.
Iker Casillas não joga nesta segunda-feira, às 13h, na Arena da Baixada, em Curitiba, contra a Austrália. Verá do banco de reservas a seleção que ele levou ao topo do mundo se despedir da Copa. Não é punição, porque não se pune um santo. É apenas a escolha do técnico Vicente Del Bosque que, eliminado, decidiu colocar para jogar todos os jogadores que não atuaram nas duas derrotas. São Iker, aos 33 anos, se vai. Provavelmente para sempre, porque finalmente viu – como sempre soube – que é mortal.