Mulher do goleiro Félix diz que ditadura estremeceu casamento na Copa de 70

Felipe Pereira

Do UOL, em São Paulo

Malene Rinaldo Venerando, 74 anos, desistiu de escrever ao marido que estava no México se preparando para a Copa de 1970. Nunca recebia resposta de Félix, o goleiro do time. Hoje ela entende o motivo e acredita que a ditadura militar confiscava a correspondência. A desconfiança existe porque o governo federal entregou envelopes que facilitariam a comunicação, mas na verdade não funcionavam.

Patrícia Venerando, filha do casal, explica que havia uma malote vindo do México com a correspondência da seleção. As famílias deveriam ir até à Rua Getúlio Vargas no Centro do Rio de Janeiro, buscar as cartas, mas quase nunca encontravam algo. "Os militares bloqueavam, tinha carta que não chegava. Sabíamos que não era fácil e desistimos de escrever", conta enquanto a mãe acena com a cabeça ratificando.

Mas Malene descobriu isto tarde. Se soubesse antes não teria enchido Félix de desaforos. O mal entendido começou quando voltava do colégio onde deixara as filhas. Ela parou na banca de jornais para verificar se havia notícias da seleção e viu uma matéria em que o goleiro aparecia ao lado de uma moça.

Ficou uma arara, ainda mais porque Félix estava todo estiloso. "Tinha uma foto dele de óculos Ray Ban e costeleta encostado em uma moça. Eu falei para o jornaleiro: 'ai bandido. E não me escreve'". Com o sangue italiano fervendo, Malene colocou toda a raiva que sentia num pedaço de papel. Como não era o envelope da ditadura, a carta chegou. Ela relata a situação com cara de quem sabe que poderia ter pensado duas vezes antes de agir.

A situação foi resolvida com as devidas explicações do goleiro. Félix, que morreu aos 74 anos em agosto de 2012, disse se tratar de uma menina. Ele contou também que estava escrevendo e o problema das cartas não chegarem era dos Correios. Marlene acreditou.

Com a comunicação difícil, ela se informava sobre o andamento da seleção pelo jornal, rádio e televisão. E foi bastante tempo sem notícias porque a preparação para Copa que consagraria uma geração levou cinco meses por causa da adaptação à altitude – o estádio Azteca, palco da final, está a mais de 2 mil metros acima do nível do mar.

Félix ficou tanto tempo longe de casa que na volta não foi reconhecido pela filha Patrícia, que na época tinha um ano e nove meses. "Quando (Félix) foi pegá-la, ela dizia que não. Ela tinha esquecido. Ele dizia "sou eu, o papai", e ela estava chorando", conta Malene.

O dia do retorno ao Brasil foi complicado. A delegação devia desembarcar às 11h no aeroporto do Rio de Janeiro, mas um atraso somados aos discursos intermináveis de políticos fizeram o encontro com os familiares ser transferido para um hotel. Era noite quando começou a carreata e havia tanta gente na rua que Malene desistiu e foi para casa.

Sem telefone, não pode avisar o marido e mandou recado pelo sogro do meio-campista Gérson. Félix participou do evento no hotel, mas estava com a cabeça na família. Só que era tanta gente, imprensa e assédio que chegou em casa somente de madrugada. O porteiro avisou que o jogador estava entrando. "Ele chegou num camburão da polícia. Não conseguia sair de lá (hotel) porque era muito povo". Escondido na viatura, driblou a multidão.

Na hora em que se viram Malene esqueceu todos os desencontros. Ela sentiu tanta falta do marido que na véspera da final contra Itália sonhou com o goleiro chegando em casa. Vestia um terninho branco e decidiu ver a partida com ele. Mas foi por pouco tempo porque os adversários fizeram um gol e Malene correu para o quarto. Em todos os jogos do Mundial a roupa fora um macacão e diante da adversidade apelou para o "uniforme oficial".

Deu certo e a Jules Rimet era definitivamente do Brasil – pelo menos até ser derretida na década de 80. Além do título, outra coisa boa aconteceu. Na época, Milton Neves era jornalista de campo e conseguiu fazer contato telefônico com uma vizinha, que gritou que tinha Félix na linha. Ligia, uma das filhas, foi mais rápida e entrou com o pai no ar. "Viu paizinho, falaram tanto de você, que era magrinho, e tão trazendo a Copa". A mulher lembra que o goleiro chorou naquele momento.

Ela também estava contente e confessa que não foge da ascendência italiana e deixa os sentimentos extravasarem: sofre, xinga e vibra muito nos jogos. Tanto que conversava com a televisão, que pela primeira vez transmitia a Copa ao vivo. Quando a bola se aproximava da área Malene dava ordens como se fosse treinadora. "Vai Félix, agarra Félix, defende, defende", eram as frases mais repetidas.

A TV também mostrou um momento de aflição. No jogo contra a Inglaterra o marido se deu mal numa dividida e caiu desacordado em campo. "Eles falaram para os familiares do Félix que estava tudo bem, foi só um corte. Nossa! Ele apagou, era triste de ver." Perdeu um molar e passou o resto da Copa comendo alimentos pastosos.

Ma foi só um susto. Félix continuou no time titular e participou da final contra a Itália. Na decisão a seleção marcou quatro vezes. O placar fez lembrar o casamento entre Malene e Félix. O casal trocou alianças num sábado, às 18h30. Às 21h um diretor da Portuguesa, time que era defendido pelo goleiro na época, foi buscá-lo. Afinal, teria jogo no dia seguinte. "Ele falou 'vai tirar este terno, põe uma calça jeans e uma camisa'. Mexiam comigo que ele foi dormir com o Ditão, atleta da Portuguesa", diverte-se ao lembrar.

No domingo, a Portuguesa fez quatro gols e venceu o Noroeste. Depois da partida o time inteiro chegou na traseira de um caminhão para a festa de casamento. Foi uma comilança com barril de chope e muitos brindes. Começava ali a união de dois descendentes de italianos bem diferentes na personalidade. Malene conta que era mais seca, enquanto o marido era amoroso e afetivo.

A questão ciúmes também distinguia o casal. Ele foi eleito na paróquia local o jogador mais bonito, mesmo resultado de uma eleição na escola das filhas. Ainda assim a mulher não se preocupava muito. Era Félix quem se incomodava. "Se tinha um decote ele jogava uma caneta dentro". Assim seguiram juntos até que a morte os separou. Mas Malene acredita que a distância é momentânea e um dia estarão lado a lado novamente.

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