Zé do Pedal parou de pedalar. Após 3 Copas sobre rodas, ativista está a pé

Adriano Wilkson

De São Paulo

Um dia, aos vinte e poucos anos, José acordou com vontade de ir à Copa do Mundo. Seria dali a seis meses, na Espanha, a um oceano Atlântico de distância, mas não tendo ele nem dinheiro nem um plano, resignou-se a comunicar ao irmão Jeremias sua falta de sorte e meios.

"Por que você não vai de bicicleta?", provocou o irmão.

Era obviamente uma piada.

Mas José levou a sério. Começou a pedalar e só parou nas portas do hotel Parador Carmona, na Andaluzia, dois minutos antes de a seleção brasileira desembarcar. Então abriu caminho entre a multidão de torcedores e jornalistas, e chegou diante de um rapaz muito alto, muito magro, muito barbudo e de vasta cabelereira cacheada.

O barbudo foi rapidamente informado sobre José e sua jornada, que incluía quinze pares de pneus furados em 156 pontos diferentes, 420 raios de bicicleta quebrados e um acidente no México provocado por um canhão de guerra, no qual José precisou pular em um rio para se salvar.

"É preciso ter muita coragem", decretou Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira.

José Geraldo de Souza Castro explodiu em lágrimas. Testemunhas dizem que também trocou poucas palavras com Zico e Júnior. No calor de Carmona (chegou a fazer 38º C naquela tarde), José caiu de exaustão e não teve forças para levar a bicicleta para dentro do hotel. Seu coração explodiu. Chamaram um cardiologista. Com ajuda médica, o coração de José arrefeceu, mas não seu espírito.

Durante os 32 anos seguintes, ele não parou de pedalar. Conheceu 73 países em cinco continentes, viu três Copas do Mundo e quatro guerras civis, sobreviveu a tempestades, terremotos e furacões, sempre a bordo de veículos movidos a pedais, sempre com pouco ou nenhum dinheiro.

Virou o Zé do Pedal. Metade da população de Viçosa (MG), onde ele se criou, o considera um herói; a outra metade, um louco. Recebeu, de toda forma, o título de cidadão honorário da Câmara municipal.

Para encontrá-lo, é precisa telefonar a Bruno Lima, um cineasta que rodou um filme sobre o Zé. Ele sabia onde o ciclista estava?

"Está na Amazônia, numa nova jornada, quer atravessar o país em um ano", ele respondeu. Mas essa não se tratava de uma viagem qualquer. Era ainda mais louca.

"Agora ele está a pé, caminhando no acostamento das estradas, atravessando reservas indígenas, empurrando uma cadeira de rodas vazia."

VIAJANTE, TORCEDOR E ATIVISTA

O Zé do Pedal não viaja por um ideal, mas por vários. No transatlântico de volta ao Brasil depois de ver a seleção de Sócrates e Zico ser eliminada da Copa de 1982, ele decidiu que queria conhecer o mundo, mas também transformá-lo. Foi por isso que, no ano seguinte, começou uma volta ao planeta de bicicleta. No caminho, entregava panfletos de uma campanha de combate ao câncer.

O destino final foi o México, onde viu sua segunda Copa do Mundo, em 1986.

Para alertar o mundo sobre a situação das crianças da Etiópia, fez o trecho no Japão a bordo de um velocípede infantil. Para conscientizar a opinião pública sobre a poluição do Rio São Francisco, navegou por ele em um pedalinho. Para ser ainda mais didático sobre os benefícios da reciclagem, construíu um pedalinho de garrafa pet.

A causa das águas é muito sensível ao ativista, que resolveu singrar o Atlântico a bordo de outro pedalinho numa jornada chamada "Da Liberdade ao Cristo", de Nova York ao Rio de Janeiro. A aventura teve fim precoce, porém: no golfo do México, Zé do Pedal foi surpreendido por Rita, o furacão que assolou parte da América Central e o seu barquinho. Teve de voltar ao Brasil de avião.

Mas às vezes Zé do Pedal também tem sorte.

Todos os dias, ao acordar, ele precisa lidar com a incerteza sobre o local onde irá dormir na noite seguinte. Tem gente que oferece um pedaço de chão para ele montar sua barraca, tem gente que oferece um quarto, teve gente que já pagou uma diária de hotel e teve um delegado de polícia que disse: "Tem uma cela vazia na cadeia, se quiser dormir lá, fique à vontade". Zé do Pedal quis.

Mas nem todas as noites são tranquilas. Ao cruzar o deserto do Saara a caminho da África do Sul (em uma espécie de kart de pedal de uma fabricante de brinquedos infantis), ele precisou acampar no acostamento da estrada e não podia se mexer muito porque as areias da região são, literalmente, campos minados.

Aos 56 anos, vivendo em condições insalubres e se alimentando às vezes precariamente, ele pode se orgulhar de ter o corpo quase fechado: adoeceu apenas uma vez nas últimas três décadas. Foram dez dias intranquilos, de febres e desmaios, no meio de uma crise de malária aguda, contraída em Gana.

UMA CADEIRA NA AMAZÔNIA

Sob temperaturas de até 39º C, carros prateados passam com certa velocidade ao lado de um homem empurrando uma cadeira de rodas vazia no acostamento da BR-174 que corta o estado de Roraima. Ele já está nessa caminhada solitária há mais de um mês e meio e, na última vez que conseguiu dar notícias, havia vencido 325 km desde o rio Ailã, no município de Uiramutã, o mais setentrional do Brasil.

Trata-se de apenas 3% do caminho, porém. Até fevereiro de 2015, Zé pretende empurrar sua cadeira por 20 estados rumo à cidade de Chuí, no Rio Grande do Sul.

Eventualmente, quando consegue sinal de internet, atualiza seu site oficial com detalhes do trajeto. No dia 22 de fevereiro, escreveu:

"A pista de rolamento [da BR] é estreita, e quando alguém comete alguma imprudência obrigando o automóvel que vem em direção oposta a sair da pista de rolamento, com certeza o capotamento, muitas vezes com vítimas fatais, é inevitável. As margens da BR estão cheias de carcaças de carros acidentados, bem como uma quantidade imensa de lixo, principalmente latas de cervejas e refrigerantes."

Trata-se agora de uma "cruzada pela acessibilidade", conforme ele a descreve; sua jornada foi batizada por ele mesmo como "Extremas Fronteiras, Barreiras Extremas".

Zé, que sempre andou por aí com as próprias pernas, quer mostrar as dificuldades pelas quais passam aqueles que têm limitações de locomoção.

O espaldar da cadeira de rodas traz impressas as palavras "Igualdade, Dignidade, Respeito" como se Zé do Pedal fosse um misto de agente moderno da Revolução Francesa e hippie bicho-grilo. Mas, mesmo que as ambições do mineiro sejam imensas, seu jeito de falar é sempre calmo, lento, aparentemente incapaz de ir acima do tom do interlocutor.

"Ô TREM DOIDO SÔ", exclamou ele ao entrar na suíte de hotel que um casal lhe ofertou na África. Ele estava há dias sem tomar um banho decente. Havia também uma cama king size. "Hoje não vai ser preciso acampar", comemorou se dirigindo à câmera que filmava seus passos.  

VIDA E OBRA

"Senhor Editor,

Sou mineiro e estou dando a volta ao mundo de bicicleta. Sou correspondente internacional da International Press Association, com sede em Hollywood, e atualmente estou escrevendo um livro autobiográfico: Vida Flutuante."

A carta chegou numa manhã de junho de 1985 à redação da revista Lua Nova e causou alvoroço entre os jornalistas. Direto de Cingapura, Zé do Pedal (assim ele assinava a carta, com o apelido entre parênteses após seu nome completo) se oferecia para ser correspondente internacional da publicação voltada a questões políticas, econômicas e sociais.

Pouco tempo depois, seriam publicados dois textos do autor-ativista. Um era a descrição de um campo de refugiados na Tailândia. O outro era um artigo autobiográfico no qual ele exaltava a torcida do Atlético-MG e explicava as condições do lugar onde ele nasceu na pequena Guaraciaba (MG).

"O 'hospital' onde nasci", escreveu. "Era uma farmácia que às vezes era açougue, supermercado, ponto de jogo e, como estava numa esquina, nos fins de semana era ...boteco de esquina." Também era um lugar onde havia "um bêbado que se recusava abertamente a dar a tradicional primeira 'golada pro santo'".

De acordo com algumas pessoas que o acompanharam em suas viagens, Zé não é do tipo que abre o coração com facilidade. 

No caminho de ida para a Copa de 82, passando pelo Equador, precisando de abrigo para passar a noite, ele pediu ajuda em um hotel na beira da estrada. Foi atendido. Acabou fazendo amizade com a família dona do lugar. Gostou da filha do dono.

Como no enredo de uma novela mexicana, José Geraldo se apaixonou por Maria Fernanda. Mas ele precisava seguir caminho, até a Espanha ainda havia um oceano de distância. Na volta de lá, foi reencontrar seu amor. Eles casaram e tiveram dois filhos. Ficaram juntos até que Maria Fernanda cansou de pedir para ele desistir das viagens. Ele devia pensar mais no futuro, ela implorou; e explodiu. E queimou quase todas as fotos que ele fez em sua primeira jornada.

Mas ele nunca foi muito de pensar no futuro, disse seu irmão mais velho, Jeremias, o mesmo de quem Zé ouviu a ideia de sair pelo mundo sobre rodas. Jornalista em Viçosa, Jeremias acaba de escrever uma biografia do aventureiro, ainda não publicada.

Maria Fernanda não o entendia. Zé também não se explicou. "Eu cheguei numa bicicleta e vou embora numa bicicleta", suspirou. E assim foi.

FILME TAMBÉM SEM DINHEIRO

Rodado em 2010 na parte final da aventura de Paris a Johanesburgo, "Zé do Pedal, As Fronteiras do Mundo" tem o espírito de seu protagonista.
 
Com absoluta falta de recurso, os realizadores Bruno Lima e Fabricio Menicucci tiveram a ajuda de amigos e fizeram uma vaquinha virtual para filmá-lo e finalizá-lo.
 
Eles acompanharam Zé durante duas semanas na África do Sul, quando o mineiro chegou à cidade que abriu a Copa e foi recebido com festa. O curta-metragem foi concluído apenas em agosto do ano passado, mais de três anos após as filmagens. A película faturou o prêmio de melhor documentário na sua estreia em um festival mineiro.
 
Ele será exibido na Espanha no começo do próximo mês e acaba de ser convidado para um festival no Rio de Janeiro. Os produtores estão trabalhando agora num série televisiva sobre Zé do Pedal.

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