Tim Vickery: A mesma globalização que atrapalha pode salvar o futebol brasileiro
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REUTERS/Gustau Nacarino
26.mar.2014 - Neymar comemora o seu segundo gol na partida entre Barcelona e celta pelo Campeonato Espanhol
No aeroporto de Guarulhos, na semana passada, encontrei um pai que estava a caminho da Espanha com seu filho para assistir ao clássico entre Real Madrid e Barcelona pelo Campeonato Espanhol. Enquanto isso, eu estava indo para o Chile para ver a partida entre Unión Española e San Lorenzo, da Argentina, pela Copa Libertadores da América.
Andei em direção ao estádio da Unión Española por uma avenida cheia de poeira e em péssimas condições chamada "Einstein" – e o tempo todo pensei: não era preciso ser nenhum gênio para concluir que eu tinha todas as razões para estar com muita inveja dos meus amigos do aeroporto.
Eles teriam pela frente uma caminhada feliz até o Santiago Bernabéu, em Madri, um estádio glamouroso por onde já passaram os melhores jogadores do planeta, o centro do futebol mundial. Nada disso se aplica ao antigo estádio Santa Laura, em Santiago, o meu destino naquela noite. E, conforme andava pela avenida Einstein, eu pensava em como passaria meu tempo em uma das periferias do futebol mundial.
Mas mesmo a periferia pode ser um lugar muito interessante. Toda vez que eu vou para um jogo de algum clube na América do Sul, fico cheio de esperança de presenciar os primeiros estágios de uma carreira que pode se tornar muito bem-sucedida. Deste lado do Atlântico, nós podemos pegar as futuras estrelas construindo seus caminhos para o sucesso. É como assistir aos trailers no cinema, nós vemos uma prévia dos jovens que estão a caminho de se tornarem grandes nomes conhecidos no mundo inteiro. Vale a pena andar por algumas ruas empoeiradas e cheias de cães sarnentos para ter um privilégio como esse.
É fascinante ver como a relação dos torcedores brasileiros com o futebol europeu mudou nos últimos 20 anos, desde que eu passei a morar no Brasil. Quando eu cheguei, logo depois da Copa do Mundo de 1994, era relativamente comum ver camisetas do Barcelona e do Deportivo La Coruña nas ruas do Rio de Janeiro. Mas elas não eram necessariamente usadas por pessoas que realmente torciam por esses clubes. Era apenas a declaração de uma identificação pessoal com Romário e Bebeto - a dupla de ataque que foi tão importante na conquista do Mundial -, que jogavam por esses times.
Agora, claro, existe uma preponderância de todos os tipos de camisas europeias. Algumas delas são simplesmente "moda". Mas também é inegável que laços foram criados entre torcedores brasileiros e clubes de futebol europeus. Nos dias de hoje, existem inúmeras pessoas que desenvolveram uma paixão por um time do outro lado do Atlântico, independentemente de um grande jogador brasileiro atuar nele ou não.
Em um lugar não muito longe de onde eu moro, um velho senhor administra uma escolinha de futebol. Cerca de 15 anos atrás, as crianças de lá falavam com brilho nos olhos sobre o sonho que elas tinham de jogar pelo Flamengo ou pelo Vasco. As crianças de hoje sonham com Real Madrid e Barcelona. Elas podem não saber apontar onde está a Espanha no mapa, mas elas têm a noção de que esses times e outros gigantes da Europa são os melhores clubes do mundo. É onde eles querem estar, já que eles são parte de uma geração globalizada.
É evidente que esse processo contém alguns aspectos preocupantes. Globalização significa concentração. Abrir o planeta todo para uma competição global leva ao triunfo de um gigante. Nos termos do futebol, isso significa o surgimento de "supertimes". Isso é um motivo de preocupação até na Europa – as lacunas que se abrem entre eles, os gigantes, e o resto dos times ameaçam a viabilidade dos campeonatos nacionais.
Para o resto do mundo, então, isso pode ser extremamente nocivo. Há lugares na África e na Ásia onde jogos locais às vezes precisam ser marcados respeitando o calendário do Campeonato Inglês. Se um jogo local coincide com um jogo na Inglaterra, todos os torcedores ficarão em casa para assistir aos craques de lá, como Luis Suárez, do Liverpool, Sergio Aguero, do Manchester City, Oscar, do Chelsea, e Rooney, do Manchester United. Pode se tornar muito difícil sustentar um campeonato local dessa forma, como uma eterna "segunda melhor opção" para algo que está acontecendo a milhares de quilômetros de distância.
Felizmente, isso não acontece tanto na América do Sul. É verdade, os públicos nos estádios brasileiros são frequentemente frustrantes – quando o Brasil foi confirmado como sede da Copa do Mundo, uma inspeção da Fifa reforçou que um dos objetivos do torneio seria aumentar o número de torcedores em jogos domésticos. Mas há inúmeros fatores para explicar isso. A grande maioria dos torcedores não estão se distanciando porque eles prefeririam ficar em casa assistindo aos jogos da Europa. No mercado brasileiro, o grande chamador de audiência continua sendo o futebol nacional – ainda que os números para os campeonatos estaduais estejam em constante queda.
Mas aqui existe uma virada feliz para o processo de globalização. Um dos grandes problemas que o futebol brasileiro tem que enfrentar, discutido aqui em uma coluna anterior, é o calendário arcaico, confuso e mal organizado. Da forma como eles são disputados, os campeonatos estaduais não têm despertado o interesse de nenhum clube, seja ele grande ou pequeno. Esse defeito foi claramente detectado pelos jogadores. Nos meus 20 anos morando no Brasil, eu não consigo me lembrar do desenvolvimento de algo tão positivo no futebol brasileiro quanto o movimento Bom Senso F.C. Uma organização de jogadores para estimular um debate sobre a forma como o futebol local é organizado. Mesmo que não se concorde com todas as propostas deles, o fato de estarem tentando forçar um debate sobre o tema é um passo significativo para uma evolução.
Muito disso veio da iniciativa de jogadores mais velhos, que tiveram experiência no futebol europeu. Ninguém precisou contar para eles. Eles próprios viram que é possível fazer as coisas de uma forma diferente, que um futebol melhor organizado é um objetivo atingível.
A exposição ao futebol europeu mostra que alguns dos jogadores mais experientes do Brasil compreendem muito melhor a indústria da qual fazem parte do que as pessoas responsáveis por administrá-la. A globalização pode ter levado os melhores talentos de campos de futebol brasileiros. Mas também trouxe o oxigênio de novas ideias.