Colômbia já peitou a Fifa 2 vezes: criou liga pirata e abriu mão da Copa
Adriano Wilkson e Felipe Pereira
Do UOL, em São Paulo
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Di Stéfano participou da Liga Pirata antes de se transferir para o Real Madrid
A Colômbia ficou muito tempo longe dos holofotes do futebol mundial, mas a história do esporte no país tem dois episódios únicos e, de certa forma, pouco conhecidos. No final da década de 1940, os colombianos criaram uma liga de futebol à revelia da Fifa, atraíram os melhores e mais rebeldes jogadores do continente e provocaram a ira das outras federações americanas.
Três décadas depois, a Colômbia protagonizou um feito único no futebol mundial: nas vésperas de receber uma Copa, seu presidente simplesmente cancelou o evento no país, alegando dificuldades econômicas. Ele bateu a porta na cara da Fifa, que precisou improvisar o Mundial de 1986 no México, que havia recebido o torneio 16 anos antes.
Conheça a seguir um pouco mais sobre esses dois momentos.
A liga pirata: os maiores craques em um campeonato minúsculo.
Imagine se um grande craque como Neymar um belo dia resolver se transferir, digamos, para o campeonato peruano de futebol. O espanto deve ter sido grande também entre os torcedores argentinos que viram Di Stéfano, o grande jogador do país, largar o River Plate para atuar no desconhecido Millonarios, de Bogotá.
O presidente do Millonarios chamava-se Alfonso Senior, um visionário para alguns, um oportunista para muitos outros. Senior soube que os jogadores argentinos estavam em greve, reclamando dos salários baixíssimos em um país que ainda discutia se o futebol deveria ser profissional ou amador.
Senior não pensou duas vezes. Criou uma associação de futebol paralela na Colômbia e disse que começaria naquele momento a era do futebol profissional. Convidou aqueles que estavam insatisfeitos em seus clubes e lhes ofereceu salários de profissionais, uma realidade que poucos jogadores viviam no continente.
Não foi apenas Di Stéfano que fez a travessia. Pederneras, o segundo melhor argentino da época, também foi seduzido pelos dólares da recém-criada "liga Dymaior" (mais tarde apelidada liga pirata). Atletas de todo o continente e alguns até da Europa, insatisfeitos com os salários que recebiam em seus países, foram jogar nos clubes colombianos. O botafoguense Heleno de Freitas foi o brasileiro mais conhecido a se aventurar por lá. Esse momento entrou para a história como o "El Dorado" do futebol colombiano.
"Naquela época, o futebol era muito incipiente na Colômbia, e Bogotá era uma cidade minúscula, de habitantes introvertidos e com tradições agrárias", contextualiza Hésper Eduardo Pérez, professor do departamento de Sociologia da Universidade Nacional da Colômbia. "A 'rebelião' de Alfonso Senior foi um passo adiante para o futebol no país, uma oportunidade especial de estar em contato com práticas mais avançadas, como o que se fazia na Argentina e no Brasil."
O caráter de "rebelião" da ligava se dava porque os dirigentes não respeitavam algumas regras da Fifa como a limitação de estrangeiros em cada equipe e o pagamento do passe ao clube de origem de um jogador contratado.
Senior formou seu time de craques sem ligar para essas regras, mais ou menos aceitas pela comunidade internacional, e excursionava pelo país e pela Europa, ganhando milhares de dólares.
"Me chamaram de louco", recordou depois Senior sobre a contratação de Di Stéfano. "Como íamos pagar 5 mil dólares de entrada e mais 500 se salário... Mas no dia em que o apresentei, de terno e gravata, arrecadamos quase 18 mil dólares, sete vezes mais do que o normal. Foi um negócio muito bom."
Mas como não existe almoço grátis, o preço da aventura colombiana logo se cobrou. Dirigentes das federações que viram seus jogadores desertar começaram a espernear. Começou um intenso lobby na Fifa para que a entidade interrompesse o que acontecia na Colômbia.
Assim, a federação internacional decidiu não permitir mais o desrespeito a suas regras e deu um ultimato aos dirigentes colombianos em 1951: em dois anos, a farra do "El Dorado" tinha que acabar.
Senior aproveitou o prazo para lucrar ainda mais, aumentou a duração das excursões e, no fim, vendeu Di Stéfano ao futebol espanhol. Após uma briga até hoje obscura entre Barcelona e Real Madrid, o craque argentino acabaria atuando no clube merengue.
A aventura da liga pirata rendeu frutos ao futebol no país, que antes era restrito a poucos círculos da sociedade colombiana, conforme afirma o professor Pérez.
"O desenvolvimento do futebol depois disso foi bastante rápido. Cada uma das maiores cidades do país passou a ter suas equipes, e a popularidade do esporte cresceu de maneira incrível na época do 'El Dorado'."
Da Copa eu abro mão
Alegando que não estava no poder para atender aos caprichos da FIFA, o presidente da Colômbia, Belisario Betancur, disse um retumbante não para a Copa do Mundo. O país fora escolhido para sediar o torneio de 1986, mas os planos precisaram ser alterados depois de um pronunciamento em cadeia nacional de televisão que continha o trecho: "não se havia respeitado a regra básica, a questão de honra de que o Mundial devia servir à Colômbia e não a Colômbia servir à multinacional do futebol", declarou o presidente.
Com este discurso ácido Betancur se recusou a organizar a Copa. O motivo alegado em novembro de 1982, ano que o novo presidente assumiu o cargo, foi a delicada situação econômica do país. O professor Álvaro Zerda, da Universidad Nacional da Colômbia, diz que a decisão foi acertada porque o país tinha problemas com a dívida externa e déficit externo, ou seja, saia mais dinheiro que entrava.
"Uma das primeiras medidas de Betancur quando assumiu foi desvalorizar o peso em 50% para tentar aumentar as exportações e diminuir este déficit comercial". Zerda conta que algumas pessoas reclamaram da desistência em sediar a Copa, principalmente o setor de transporte marítimo, mas a promessa de empregar o dinheiro que iria para organização do Mundial em áreas sociais convenceu a população.
O torneio foi visto como um capricho pelas pessoas e as exigências da FIFA um exagero. A entidade pedia 10 estádios com capacidade para 40 mil pessoas e dois que comportassem 80 mil espectadores. O professor de Economia ressalta que ainda seria necessário investir em aeroportos e comunicação.
A decisão em recusar a Copa de 1986 era esperada porque fez parte da plataforma de campanha de Betancur. Zerda conta também que a violência preocupava os colombianos. O país saia da fase dos cartéis da maconha, no Norte, e assistia a formação dos cartéis da cocaína. Combater a criminalidade e investimento social foram apontados como prioridades e a Copa uma extravagância.
Mesmo com o discurso que agradou à população, o professor afirmou que nada se materializou. O dinheiro não foi empregado em áreas sociais e a violência ganhou corpo. Tanto que ainda no governo Betancur o Palácio de Justiça, em Bogotá, foi invadido pelo M-19, grupo guerrilheiro.
Pablo Escobar foi apontado como financiador da ação que ocorreu em 6 de novembro de 1985 e resultou na morte de 98 pessoas. Entre as vítimas estavam 11 juízes. Como o discurso para negar a Copa não virou prática a Colômbia afundou numa crise de violência.
Nesta altura a FIFA estava com outras preocupações. A entidade tomou outros caminhos e passou a procurar uma nova sede para o Mundial. O México foi o escolhido aproveitando a estrutura de 1970.