Borracha foi atalho para Manaus ser a primeira cidade do Brasil com futebol
Felipe Pereira
Do UOL, em Manaus
A seleção de Cristiano Ronaldo vai jogar em Manaus neste domingo pela Copa do Mundo, mas a cidade abriga partidas com conterrâneos dele há mais de um século. Isto porque o futebol no Brasil nasceu na Amazônia, com partidas sendo disputadas desde 1890, muito antes de Charles Miller, afirma o produtor Chicão Fill, que está finalizando um documentário sobre a origem do esporte em Manaus.
Ele diz que a cidade ser sede do primeiro Vasco da Gama do Brasil é uma prova deste pioneirismo. No ano de 1913 já havia um clube da colônia portuguesa na cidade com a cruz de malta no peito. O xará do Rio de Janeiro foi fundado como clube de regatas em 1898, mas só estreou nos gramados em 1916.
Como tudo em Manaus, a história está entrelaçada com o ciclo econômico da borracha. O documentarista diz que no final do século 19 as fábricas surgidas depois da Revolução Industrial ganharam produtividade com o uso do material coletado nas seringueiras da Amazônia. A cidade se tornou uma potência econômica internacional e local em que mais se comprava diamantes no mundo. Com dinheiro sobrando, investimentos em infraestrutura foram realizados.
As concessões para fazer as obras e explorar serviços ficaram a cargo dos ingleses, que trouxeram hábitos próprios como o chá das 5, o tênis e o futebol. O documentarista conta que nas entrevistas descobriu que os primeiros relatos de jogo de futebol em Manaus datam de 1890. Ele afirma que era uma esporte para a elite e jogado com bolas trazidas da Europa.
Os participantes eram majoritariamente jovens e pertenciam a famílias inglesas vindas em navios de Londres e Liverpool, que moravam em áreas afastadas do centro de Manaus. Não havia interesse em interagir com a população local. Eles construíram chácaras em áreas por onde hoje passa a avenida que leva a Arena Amazônia. Os moradores das classes sociais mais baixas da cidade não sabiam nem o nome do esporte. Chamavam-o de "o jogo da bola".
Esses locais exclusivos da elite britânica abrigaram a primeira quadra de tênis do Brasil e o campo do torneio de futebol dos ingleses, lembra Chicão. "No final da tarde eles jogavam futebol. Depois do chá das cinco vinha a peladinha". Estes acontecimentos ocorreram na última década do século 19, declara o documentarista. Ele diz que na sequência vieram as primeiras reuniões para criação da Football Association.
Os brasileiros filhos dos barões da borracha não quiseram apenas ficar olhando. Também trouxeram bolas da Europa e montaram seus times quando o século seguinte começou. Mas em Manaus há uma diferença em relação ao Sudeste. O esporte permaneceu elitista e isso teve consequências na maneira como era praticado.
"No futebol brasileiro o negro não podia bater no branco. Se batesse era falta. E se o branco batesse nele não era falta. Nasceu a ginga", conta o Chicão. Sem esta interação, Manaus praticava o estilo inglês de jogar.
Os filhos da elite de Manaus tinham dinheiro para trazer bolas da Europa, mas não tinham aceitação dos inventores do esporte. Eles passam a se enfrentar com frequência somente a partir de 1909. Assim surgiu uma rivalidade grande. Eles só aceitavam brasileiros e sonhavam em vencer a fleuma britânica.
O caldo em que o futebol nascia no Norte brasileiro tinha outro ator: os portugueses. O time mais célebre era bancados por J.G. Araújo, o principal comerciante a fazer o meio campo entre os extratores da borracha e as empresas estrangeiras. Este grande atravessador financiou o primeiro cineasta do país e também uma equipe de futebol. Manaus assistiu outro pioneirismo neste clube: ser dirigido por mulheres.
O distanciamento diminuiu e em 1909 começaram as reuniões para criar a Fada (Federação Amazonense de Desportos Atléticos). O primeiro campeonato estadual de futebol envolvendo equipes de diferentes origens ocorreu há exatos 100 anos e foi vencido pelo Manáos Athletic Club. O time formado somente por ingleses era a grande força na época. Partidas amistosas também ocorriam com britânicos que chegavam a cidade de navio e contra times formados pela elite de Belém, outra cidade beneficiada pelo ciclo da borracha.
Mas a florescente vida no meio da floresta entrou em declínio. Em 1914, a Europa servia de palco da 1ª Guerra Mundial quando o Norte brasileiro enfrentava os efeitos da biopirataria. Um inglês conseguiu contrabandear mudas de seringueira para Ásia. A a borracha produzida longe do Brasil se tornou mais barata.
Enquanto o ladrão de mudas ganhou condecoração da monarquia britânica, Manaus afundou na crise. A cidade globalizada, que tinha franceses limpando as ruas e prostitutas suecas e polonesas nas esquinas, mergulhou na decadência. Os ingleses não viram nada disso porque foram lutar na Europa. Ficaram os judeus, sírio-libaneses e portugueses.
Fechava-se um capítulo da Amazônia que começou no século 18 quando o explorador e cientista francês Charles Marie la Condamine desceu dos Andes até o delta do Amazonas. No caminho, ficou maravilhado ao ver os índios jogando um esporte semelhante ao futebol com uma bola de borracha. Ele achou a modalidde boba, mas se interessou pela esfera que quicava desafiando a gravidade.
Como material de pesquisa, a bola de sernambi foi apresentada à comunidade acadêmica internacional. Foi ela que serviu de pontapé inicial para os estudos que levaram às aplicações do látex na indústria, diz o documentarista. A descoberta permitiu que Manaus ficasse conhecida como a Paris dos trópicos. A oportunidade de ganhar dinheiro trouxe os ingleses que marcaram época na cidade.
No comércio, circulava mais libra esterlina que a moeda nacional. As construções eram feitas com ferro de Liverpool que estão hoje no centro da cidade. O porto, o Mercado Público e o sistema de esgoto são exemplos de obras erguidas pelos ingleses.
Mas para a história do futebol o ponto mais significativo é o Parque Ponte dos Bilhares, onde ficavam os campos dos ingleses. Uma linha de bonde partia do centro para levar os atletas para as peladas de final de tarde no começo do século passado. Neste domingo de Copa se o torcedor andar mais 2 quilômetros chega a Arena Amazônia.
A herança inglesa em Manaus causa sentimentos dúbios na população, conta o documentarista. Há agradecimento por obras duradouras que estão em pé até hoje. É impossível negar a influência. Um exemplo são os barcos característicos que fazem viagens pelo Rio Amazonas, uma adaptação das embarcações de Liverpool.
Mas o lado imperialista de colonizar pensando somente na exploração incomoda. A face preconceituosa de não se misturar com os moradores locais produzindo um apartheid materializado por espaços privativos não foi digerida. Tudo isso se somou às declarações inapropriadas que o treinador da Inglaterra, Roy Hodgson, fez sobre a cidade, o que levou a seleção ser vaiada no dia em que a primeira partida válida por Copa do Mundo foi disputada em Manaus.
O documentarista resume este paradoxo de sentimentos de Manaus pelos ingleses em uma frase. "Eles levaram a seringueira, mas deixaram a bola".