Lei da maconha esquenta fronteira entre Brasil e Uruguai mais do que a Copa

Bruno Freitas

Do UOL, em Santana do Livramento (RS)

Em tempos de Copa, a rivalidade futebolística obviamente está ali, em forma de bandeiras unidas e algumas provocações. Ela sempre esteve e sempre estará, afinal se trata de duas nações apaixonadas por suas seleções. Mas, nos últimos meses, o tema que concentra o debate na convivência entre brasileiros e uruguaios na fronteira de Santana do Livramento com Rivera é a nova lei da maconha, em liberação controlada recentemente aprovada no país do presidente José Mujica.

Pontualmente, nem o Mundial da Fifa mexe tanto com as emoções dos vizinhos como esta novidade na pauta social. Só que uma série de perguntas ainda sem respostas paira sobre a rotina compartilhada deste pedaço das duas nações, conhecido como "a fronteira da paz".

Numa comunidade urbana estimada em quase 200 mil pessoas, ainda não se sabe na prática como a lei uruguaia da maconha efetivamente incidira na rotina do lado brasileiro [ela entrará totalmente em vigor no final do ano]. Por exemplo, como valerá a regulamentação para os "doble chapa", casais formados pelas duas nacionalidades. Em Rivera e Livramento, é comum famílias misturadas, com seus integrantes vivendo e trabalhando de ambos os lados.

Existem outras questões, bolas pingando, como se será viável o usuário uruguaio atravessar a fronteira com maconha no bolso. Ainda, os brasileiros poderão fumar livremente nas ruas de Rivera, já que não se prevê fiscalização? O Parque Internacional, que marca a divisa, é um território compartilhado e um espaço de convivência comum. Diante de tudo isso, o lado de Santana do Livramento ainda não sabe como a questão será inserida na vida da fronteira.

O pequeno Uruguai ganhou as manchetes internacionais no último ano com a lei de liberação da maconha com controle do estado, saída do gabinete do presidente Mujica. A medida veio à tona como uma tentativa de enfraquecer o poder do tráfico de drogas no país. Entre as principais diretrizes da lesgislação, o usuário poderá se cadastrar para conseguir 40 gramas (ou 40 cigarros) por mês em farmácias. Ainda existe a possibilidade do mesmo se juntar a algum clube canábico, de no máximo 45 integrantes, ou então de plantar a erva em casa, com limite de pés.

As regras valem exclusivamente para cidadãos uruguaios, portanto excluindo os visitantes. Se alguém comprar em farmácias, não poderá cultivar a maconha em seu domicílio, nem participar dos clubes canábicos. De resto, o consumo nas ruas terá restrições parecidas com o álcool e o tabaco.

"Já existem movimentos de pessoas que querem criar clubes canábicos, tanto em Rivera como em Santana do Livramento", diz Washington Pereira, editor da versão em espanhol do jornal binacional 'A Plateia', que já entrevistou uma série de usuários. "Mas todas entrevistas em off the records. Eles não querem se identificar", acrescentar.

Mas há quem tenha dado a cara para bater do lado ativista. A primeira inicitiva de debater o tema partiu de uma marcha binacional da maconha, deflagrada por um movimento local de universitários. Em outubro de 2013, cerca de 60 ativistas foram às ruas de Santana do Livramento e Rivera, escoltados por um contingente de policiais três vezes maior, dizem os estudantes.

Uma das idealizadoras do ato, a estudante de sociologia Bárbara da Costa relata ter se sentido intimidada na cidade após a visibilidade como usuária. A jovem perdeu o emprego em um escritório de advocacia semanas após a passeata e acabou optando por se mudar para Rivera, alegando segurança. 

"A interação que se dá entre os países é super capitalista. Vem os turistas para cá, e tem a função do consumo nos free shop. A preocupação é só essa. E enquanto tem a juventude na rua, pessoal mais descolado, eles mandam embora. Aquela higienação urbana: 'saiam do centro porque a gente não quer que vocês apareçam'. Esse perfil de maconheiro, vamos dizer assim", afirma a ativista.

Mais recentemente, vozes da sociedade civil também se reuniram para tratar de um movimento na direção contrária, com finalidade de buscar mais clareza sobre como funcionará a lei da maconha na fronteira. Com liderança do vice-prefeito Eduardo Olivera, este grupo uniu representantes da igreja católica, evangélica, do comércio e hotelaria de Livramento. Na pauta dos encontros semanais, reflexões sobre a segurança pública local e o temor de que o turismo da cidade seja comprometido.

Santana do Livramento tradicionalmente recebe entre 20 e 30 mil pessoas a cada feriado prolongado, em razão principalmente da oferta de compras nos famosos free shops do lado de Rivera, com produtos isentos de impostos. Um dos temores do lado brasileiro é que a nova legislação uruguaia para a maconha, somada à falta de informação a respeito dela, incite um novo tipo de turismo, motivado pela busca pela erva, chamado informalmente de "narcotur".

"Nós não queremos ser conhecidos como a fronteira da maconha. Nos não queremos ser um ponto em que as pessoas vão se organizar para vir aqui participar de clubes consumos de drogas. Até porque sabemos que junto com a maconha virão o tráfico de drogas, a prostituição e outras coisas que não queremos na nossa comunidade", diz o vice-prefeito Eduardo Olivera, também integrante de uma família com as duas nacionalidades.

Já quando o assunto é futebol, as coisas estão em seu devido lugar nas calçadas de Livramento e Rivera. No último sábado, a fronteira acompanhou empolgada a estreia do Uruguai na Copa do Mundo, vendo nas ruas, através de telões, a inesperada derrota para a Costa Rica. O comércio dos dois lados se enfeitou diplomaticamente com as bandeiras dos países vizinhos.

A tradição local de grandes datas do futebol diz que, em caso de vitórias, cada vizinho ultrapassa a divisão e vai buzinar seu carro do lado contrário, criando alguma animosidade. Por isso, certas vezes as forças policias precisam agir. No final de semana a Brigada Militar brasileira se preparou para fechar a passagem, mas a ação acabou não sendo necessária, em razão do revés do time de Forlán.

Mesmo com as provocações eventuais, o convívio entre os torcedores parece bastante pacífico, tanto que alguns brasileiros foram facilmente identificados torcendo junto pelo Uruguai no sábado, alguns até com bandeiras do país vizinho nas costas.

"Talvez seja a grande cisão. Aqueles que dizem o seguinte: eu sou brasileiro, mas eu vou torcer para o Uruguai. Tem. Mas a grande maioria é: brasileiro torce pelo Brasil, uruguaio torce pelo Uruguai. Até porque dos dois lados existe um certo ufanismo. Mas desde muito tempo não se tem notícia de confrontos entre torcidas, porque ambos estão acostumados a torcer dentro de certos parâmetros. Agora tem um ponto comum: brasileiros e uruguaios sempre vão torcer contra a Argentina", diz Henrique Bachio, jornalista do 'A Plateia'. 

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