Vizinhos da Copa dormem em meio a cobras por causa de aluguéis caros
Adriano Wilkson
Do UOL, em São Paulo
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Junior Lago/UOL
Trabalhadores sem-teto de São Paulo montam acampamento "Copa do Povo" a 4 km do Itaquerão
A quatro quilômetros do palco da abertura da Copa do Mundo é muito fácil ouvir histórias de cobras. Um garoto em seus quinze anos conta empolgado para a mãe sobre as duas que ele e os amigos mataram logo depois de acordar.
Um homem que levanta seu barraco explica como um filhote de jararaca quase pula em cima dele quando ele removeu uma pedra do chão. Um vizinho comenta aliviado que filhote de cobra não tem veneno.
Outro responde que, se o que eles acharam era mesmo um filhote, provavelmente o resto da ninhada continua por ali.
Dona Brasília, que se apresenta como Paula por odiar seu nome de batismo, passou a última noite ouvindo um som parecido com um chocalho vindo de baixo de sua cama improvisada sobre pedras. "Tive medo até de alumiar para ver se era uma cobra mesmo."
Ela descreveu sua noite aflita a uma sobrinha, que tinha desistido de passar a madrugada em seu barraco por medo de aranhas.
Alguém disse que fogo espantaria as cobras, as aranhas e os pernilongos que proíbem o sono sossegado.
Os moradores então começaram a fazer fogueiras. Mas como é grande o risco dos barracos virarem combustível de um incêndio incontrolável, as fogueiras não podem mais ficar acesas a noite toda.
Sem fogo e com frio, Brasília dorme e acorda no meio da noite com pingos de orvalho que caem do teto de seu barraco, feito de uma lona fina permeável ao sereno de Itaquera.
Luciano foi para o acampamento com apenas uma bermuda e um par de sandálias. Na primeira noite, quando seu barraco ainda não tinha cobertura, ele se embrulhou em sacos de lixo para evitar o frio.
Sentiu os dedos dos pés congelando. Foi pedir abrigo no barraco do vizinho, e deitaram os dois num espaço onde mal cabia um. Pelo menos havia teto.
Tem gente que bebe pinga pra dormir. Tem gente que toma remédios. E tem gente que simplesmente não dorme. E no outro dia já está de pé para impedir seus barracos de cair.
É assim que estão vivendo desde a última sexta-feira cerca de 1.800 famílias que ocuparam pacificamente um terreno abandonado há décadas na zona leste de São Paulo.
Eles batizaram o lugar de "Copa do Povo". A ocupação cresceu assustadoramente em quatro dias e continua crescendo de hora em hora. Todos que chegam dizem estar ali porque não conseguem pagar aluguel em um bairro que sofre com especulação imobiliária desde que foi anunciado como palco da abertura da Copa.
Maicon, Juvenal e Cesar Augusto, amigos de 20 e poucos anos, passaram a noite toda capinando o terreno onde montariam seus barracos de lona preta e pedaços de pau.
Wemerson levou a mulher e o casal de filhos pequenos para a ocupação e eles ajudavam a erguer o da família enquanto o pai dizia à reportagem que só estava fazendo aquilo pela felicidade de todos.
Simone tinha ido comprar linha de crochê no domingo quando passou pela frente da ocupação, soube o motivo da reunião daquelas pessoas e resolveu se juntar a elas. Quer não ter de pagar aluguel tão caro para poder voltar a investir na faculdade das filhas.
Rosana, que acaba de superar uma crise de depressão e um casamento destruído, passa as tardes com seu bebê de um ano e oito meses no colo, conversando com as amigas que fez ali, fazendo planos sobre o dia em que ganhará uma casa nova.
Todos eles se sentem sufocados pelos preços que só crescem na região, crescimento que não acompanha o de seus salários. Muitos estão desempregados, vivendo de bicos ou de ajuda da família.
Todos, porém, exibem uma esperança aterradora de que conseguirão um lugar para morar. Eles são inspirados por histórias de sucesso que ouvem por ali.
Um homem disse que vai receber nos próximos meses as chaves de um apartamento construído graças a uma ocupação feita em 2007 em outra parte da cidade.
Um amigo de um amigo disse que a chance de sucesso da empreitada Copa do Povo é muito alta. Os ocupantes ponderam que o risco é baixo.
Um vai ligando para o outro, e o outro vai chamando o vizinho, o tio, o primo e quando você percebe existe um condomínio vertical de barracos pertencentes à mesma família ou a um grupo de amigos.
O prefeito Fernando Haddad disse que a desapropriação do terreno onde está a Copa do Povo em favor dos ocupantes é uma possibilidade real. A Viver Empreendimentos, construtora dona do terreno, disse em nota oficial que vai "tomar as medidas cabíveis" à invasão, mas não disse se pedirá na Justiça a reintegração de posse.
Ninguém quer morar de verdade nas barracas de lona improvisadas. O que eles foram fazer ali é pressionar o poder público para que se garanta a construção de casas ou apartamentos populares, naquele terreno mesmo ou em outros na região.
Os barracos servem para que seus donos possam entrar em um cadastro e estejam aptos a pleitear moradias através de programas habitacionais, como o Minha Casa Minha Vida.
A luta
Na noite de terça-feira, militantes do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto subiram em um pedaço de concreto com um megafone na mão e disseram aos moradores que juntos eles são fortes.
"Vocês estão aqui porque cansaram de esperar as coisas acontecerem", discursou Natalia Szermeta, que tem oito anos de experiência organizando ocupações como essa. "Nós não cobramos dinheiro, a única coisa que cobramos de vocês é luta. E a luta não é só aqui. A luta é na rua."
"A luta é pra valer!", respondiam os moradores, às centenas, punhos em riste em meio à escuridão do acampamento sem energia elétrica.
Natália passou um tempo tentando explicar aos acampados, gente desiludida com os políticos e suas politicagens, que o que todos estão fazendo ali nada menos é que política em seu sentido mais primordial.
"Não estamos aqui fazendo festa, estamos aqui fazendo uma guerra!", disse Natalia. "E temos que ficar fortes porque nossos adversários são muito poderosos."
A guerra na rua vai começar na quinta-feira, quando eles prometem sair dos barracos e protestar pelo bairro na mesma hora em que a presidente Dilma Rousseff estará inaugurando o Itaquerão.
"Que ela preste atenção no que está acontecendo aqui", disse a militante Simone Peres.