Vizinhos da Copa resistem por 3 dias, mas ficam sem casa em Itaquera

Adriano Wilkson

Do UOL, em São Paulo

  • Marco Ambrósio/Estadão Conteúdo

    Barricada pega fogo durante reintegração de posse no Caraguatatuba, em Itaquera

    Barricada pega fogo durante reintegração de posse no Caraguatatuba, em Itaquera

Era o terceiro dia de agonia. O terceiro dia sem sono de verdade. O terceiro dia de gritos na madrugada dizendo que o Choque estava descendo. O terceiro dia de sonhos intranquilos, de negociações intermináveis, reuniões tensas entre o major e os moradores, reuniões que iam a lugar nenhum. O terceiro dia de planos traçados e frustrados, de medo.

Era o terceiro dia de resistência daquelas pessoas que, pela falta de moradia em Itaquera, resolveram invadir e viver em casas alheias. Os aluguéis e o custo de vida no bairro só crescem desde o anúncio de que ali será sediada a Copa do Mundo. As pessoas se sentiam pressionadas.   

No terceiro dia, Luiz Munhoz, um motorista e professor de jiu-jitsu de 1,90 m e 90 quilos, conhecido por todo mundo no Caraguatatuba como Mancha, sentou na calçada e chorou.

Ele estava há três dias liderando as mil famílias que resistiam a um cerco da Polícia Militar ao conjunto de 31 prédios na zona leste de São Paulo. A polícia cumpria um mandato de reintegração de posse e tentava tirar as cerca de 3 mil pessoas dos apartamentos que elas vinham ocupando ilegalmente há oito meses.

Era Mancha quem negociava com a polícia, ele mesmo um "invasor" conforme sua própria definição, já que ocupava um imóvel que não era seu, junto com a mulher e os dois filhos.

Antes de cada reunião com o major, ele se encontrava com os outros moradores e levava à corporação a posição deles, que era sempre a mesma: eles só sairiam de suas casas se tivessem outras casas para si.

Mas não foi o risco de ver sua família despejada que fez Mancha desistir. Ele desistiu porque naquela manhã, no terceiro dia de resistência, sua mãe telefonara morrendo de medo. Ela tinha ouvido que havia um homem lá dentro que estava marcado para morrer.

Esse homem era ele, Mancha, o líder dos invasores. Sua mãe exigia que ele saísse dali, que voltasse com a família para a casa dela, que esquecesse aquilo tudo, que com essa gente não se brinca.

Joice, a mulher de Mancha, pressionou até que ele cedeu. Ainda com o rosto cheio de lágrimas, foi comunicar ao comandante da operação que ele estava fora.

"Major, eu estou saindo, não aguento mais", disse. O major enxugou as lágrimas do rosto dele, o segurou pelos braços e tentou demovê-lo da ideia porque ele precisava de uma liderança como Mancha para negociar com os moradores.

Mas Joice estava decidida e puxou o marido para fora. Eles saíram do Caraguatatuba caminhando. Em cinco minutos estavam na casa da mãe dele. De lá, ouviram as primeiras explosões, os primeiros gritos. Cansada de esperar, a polícia estava descendo.

Depois de três dias, o Caraguatatuba estava em chamas.

O INÍCIO

Foi também em três dias que os 940 apartamentos do Caraguatatuba se encheram de gente vindo de todos as partes de Itaquera, símbolo da carência de moradia no bairro que será a casa da Copa do Mundo em São Paulo.

Comenta-se que foi um pastor evangélico o primeiro a entrar no condomínio, que seria cedido a inscritos no programa Minha Casa Minha Vida, da Caixa Econômica Federal.

Em 72 h o lugar já estava tomado por famílias da região. Muitas estavam inscritas há anos em programas habitacionais do Estado e esperavam todo esse tempo por uma casa que nunca saía.

Outras, além disso, pagaram até R$ 6 mil para associações pelas chaves dos apartamentos, prática que também é ilegal e está sendo investigada pelo Ministério Público.

Instaladas, toda essa gente não demorou para estreitar os laços entre si, criar regras de convivência, eleger um síndico e organizar o pagamento de impostos — ou do condomínio: R$ 60 por mês para limpeza e manutenção dos prédios e áreas comuns.

Foi feito um censo populacional que constatou no fim do ano passado a existência de cerca de 2 mil crianças, 300 mulheres grávidas, 150 pessoas com deficiência e 150 idosos. As estatísticas eram usadas pelos advogados contratados pela comunidade para pleitear junto ao poder público a legalização da ocupação.

A vida seguia normal como geralmente é, com exceção do fato de que nenhum deles tinha os documentos que lhes permitiriam chamar aquelas casas de "minha casa".

Mas logo depois das festas de fim de ano, chegou a notícia que muitos temiam: a Caixa, que conseguira na Justiça um mandato de reintegração de posse, exigia que ele fosse cumprido. Eles teriam que sair por bem, voluntariamente, ou por mal, com a força da polícia.

Algumas famílias empacotaram suas coisas e voltaram para a situação de sub-moradia em que viviam antes, mas a maioria escolheu ficar, até porque não tinha aonde ir.

Até que no dia 18 de fevereiro, uma terça-feira, os soldados da Polícia Militar marcharam em direção a eles. Eram cerca de mil policiais, eles calcularam. A PM disse que eram 140. Representantes dos dois lados se aproximaram e começaram a negociar.

"Não precisam sair todos, nós queremos só o bloco B", diziam os policiais. O bloco B tinha nove prédios, 140 famílias vivendo ali. Mancha não aceitou ceder aquele bloco.

Primeiro porque não havia nenhum outro local para assentar aquelas pessoas. Depois, por uma questão de estratégia. "A gente entendeu que, liberando um bloco, ficaria mais fácil para eles tomarem os outros", recorda o motorista.

15 HORAS DE ABRAÇO

Para resistir à ameaça policial, os moradores apelaram à desobediência civil. Alguns minutos depois do primeiro contato com a tropa, eles decidiram enfrentar o inimigo pacificamente: naquela mesma madrugada, todos se dariam as mãos num abraço simbólico ao Caraguatatuba.

A polícia jamais atacaria crianças, idosos e deficientes reunidos pacificamente, eles pensaram. E ficariam ali de mãos dadas até a polícia desistir. Combinaram de levantar às duas da manhã para organizar o abraço. Outros montaram barricadas com móveis, colchões e coisas velhas para impedir o avanço do PM. 

Às três da manhã, todos os moradores que podiam estavam de pé, de mãos dadas em volta de suas casas, enviando uma mensagem clara ao outro lado: "Nós estamos aqui, nós não vamos sair."

O abraço durou quinze horas, cruzou a madrugada, a manhã e a tarde do dia seguinte. Eles cantaram o Hino Nacional e rezaram. Os adultos só abandonavam posição para ir ao banheiro. As crianças diziam que queriam ir pra cima da polícia. A polícia não avançou.

Na décima sexta hora, houve outra reunião entre os líderes dos dois lados. A polícia, dizem os moradores, procurava uma solução pacífica que combinasse o esvaziamento dos prédios e a segurança das pessoas.

Mas a eles só eram dadas duas opções: ir para um albergue da Prefeitura ou para um abrigo temporário. "Não somos craqueiros!", se revoltavam, recusando mover um músculo dali.

MEDO E PARANOIA

Fez calor na noite de quarta-feira, na véspera do avanço da PM, mas os dois homens que apareceram na porta da casa de Mancha usavam moletom, as mãos escondidas dentro dos bolsos dos abrigos.

O dono da casa estava reunido com amigos e vizinhos, três ou quatro homens altos, fortes, que costumavam fazer bicos como seguranças em festas da região.

"Essa é a casa do Mancha?", perguntou um dos visitantes, sorrindo, olhando os homens que formavam uma espécie de guarda a um dos líderes da resistência: "Se a gente quisesse te matar, não conseguiria, hein, Mancha?"

Eles diziam ser moradores do condomínio, mas ninguém os tinha visto antes.

Traziam um pedaço de papel com um endereço manuscrito. E uma ideia estranha: organizar uma comissão, sair do conjunto e montar acampamento na frente da casa do governador Geraldo Alckmin para forçá-lo a impedir a reintegração de posse. Mancha argumentou que esse ato não faria sentido.

Ele começou a temer que aquela era apenas uma armadilha para tirá-lo do prédio. Os amigos desconfiaram que os visitantes estavam armados e que tinham ido ali para machucar.

Mancha descartou a ideia da pressão sobre Alckmin e dispensou os desconhecidos.

Ao mesmo tempo, começou a correr pelos prédios o boato de que os telefones dos moradores estavam grampeados. O clima de paranoia se espalhou como uma gripe e eles pararam de comentar estratégias pelo celular.    

Mas foi pelo celular, à uma hora da manhã, que Mancha recebeu a notícia que ele já temia há dias: por ter acumulado mais uma falta, estava demitido do emprego de motorista particular. Desempregado, foi dormir de cabeça quente.

Às 4h da manhã, acordou com a ligação de sua mãe, exigindo que ele fosse embora.

Às 8h, ele reuniu os moradores, comunicou sua saída e rezou um pai-nosso. Às 8h10, a polícia começou a entrar.

FUMAÇA E CAOS

Michelle Rodrigues tem 26 anos, é cantora de reggae e vendia consórcios de financiamento de imóveis da Caixa, a mesma empresa que tentava tirá-la de casa. Alta, ela tem uma arara tatuada no braço esquerdo e uma cabeleira que cai até a cintura num rastafári típico. Por causa disso, ela é conhecida como Rasta.

Como todo mundo, ela acordou cedo na manhã de quinta-feira e observou da janela de seu apartamento as crianças reunidas na calçada. Telefonou às amigas Eliana e Gabriela Maurelli, que estavam posicionadas num prédio vizinho para fotografar tudo o que acontecesse na ocupação.

Ela ainda sentia uma dor residual no pé direito fruto de um acidente com uma panela de pressão alguns dias atrás. Mas ela começou a ignorar a dor para fugir de três bombas de efeito moral que explodiram a seu redor.

Rasta lembrou do que tinha visto na televisão e correu para seu apartamento atrás de um pano embebido em vinagre — vinagre era bom para evitar os efeitos do gás lacrimogênio. Com a boca e o nariz cobertos, ela tentava organizar o caos que se instalou após a PM começar a agir.

Ela viu uma mulher cega, com um bebê de colo, sem saber pra onde correr, sem saber se estava fugindo ou indo em direção ao caos. Ela viu sua vizinha, Vanessa, que tinha recentemente dado à luz e tentava desesperadamente salvar seus pertences e temia que se rompessem os pontos da cesariana.

Ela viu uma mulher que estava grávida sendo levada com urgência para o hospital porque o susto, as bombas e a correria tinham antecipado o parto. Ela viu gente sendo carregada por macas improvisadas a ambulâncias estacionadas fora do condomínio.

Com o avanço da PM, a organização dos ocupantes se esfacelou em desespero. Houve quem tentasse partir para cima da polícia e, segundo os próprios moradores, até atirar contra ela. De acordo com a definição do major Edilson Batista, a corporação reagiu de maneira "pontual" e com "energia necessária."

A resistência de três dias tinha caído em alguns minutos.

PROTESTO NO ITAQUERÃO

Após sete meses no Caraguatatuba, Mancha voltou a pagar aluguel. São R$ 700 mensais por um apartamento também em Itaquera, bairro que viu um aumento nos preços dos imóveis desde que foi confirmado como sede da Copa. Como perdeu o emprego durante a resistência de fevereiro, vive de bicos como segurança; trabalhou, por exemplo, no show da banda Metallica, no Morumbi.

Rasta está temporariamente na casa da sogra, também em Itaquera, onde ela, o filho de colo e o marido vivem com outras três pessoas, em um pequeno imóvel de dois quartos. Como profissão, ela vende produtos naturais por telefone. Nas horas vagas, é vocalista de uma banda de reggae.

Nas semanas após serem retirados do condomínio, eles começaram a reunir os moradores para tentar ajudar aqueles em pior situação. Há relatos de pessoas que estão morando na rua, uma criança que desenvolveu um problema respiratório por inalar fumaça de bomba e outra que precisou recorrer a um psicólogo para se recuperar do trauma daquele dia.

Agora, os ex-moradores se preparam para criar uma associação e, juntos com outros movimentos sociais, engrossar os protestos contra a Copa do Mundo.

Há a previsão de uma grande mobilização para frente do Itaquerão. "Moradia digna é um direito assegurado na Constituição e vamos lutar por ele", afirma Mancha.

A reportagem solicitou uma entrevista com o major Edilson Batista, mas a assessoria de imprensa da PM disse que a corporação não comentaria o assunto.

Durante a reintegração de posse, a Caixa Econômica Federal soltou uma nota oficial informando que "não negociava com invasores". Ainda não há previsão para realização do sorteio dos novos moradores, que serão pessoas cadastrados no Minha Casa Minha Vida. O cronograma de entrega dos imóveis depende da finalização dos reparos.

SEM TETOS MARCHAM À PREFEITURA

Na manhã desta quarta-feira, um grupo de cerca de 500 pessoas protestaram contra a falta de moradia em São Paulo. Eles caminharam por algumas das principais vias da capital paulista rumo à sede da Prefeitura para pressionar o prefeito Fernando Haddad.

 

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