No Amapá, a Fifa não apita: É o rio que decide quando rola o futelama

Rodrigo Bertolotto

Do UOL, em Macapá (AP)

A lama chama a atenção na capital do Amapá e não tem nada a ver com o senador José Sarney e sua hegemonia de 24 anos desde que o Estado foi criado. Explica-se: duas vezes por dia, o rio Amazonas se recolhe e deixa uma faixa de praia lamacenta, onde macapaenses jogam um estilo nativo de futebol.

É o futelama. E o rio mais caudaloso do mundo é a Fifa da modalidade, decidindo o calendário, marcando com a maré quando começam e terminam as partidas dessa variação do futebol que possui até federação e campeonato estadual.

"Já teve jogo decisivo em que água estava no joelho dos jogadores, mas a cheia veio com tudo e tivemos que sair correndo e adiar o restante da partida para outro dia", lembra Mário Frota, o criador e presidente há sete anos da FAFtl, sigla para a Federação Amapaense de Futelama.

O tédio dos pescadores inventou essa disciplina esportiva. Quando aportavam na orla de Macapá para vender seus produtos, os ribeirinhos tinham que esperar o rio subir para seus barcos desencalharem da lama e voltarem para casa. Eles começaram bater uma bola para matar o tempo. Os rapazes das peixarias se juntaram. Os moradores das palafitas vizinhas também gostaram. Quando se viu, toda a capital estava brincando no lodo.

O próprio Joseph Blatter do futelama era um vendedor de peixe. "Na época, jogava também profissionalmente por um salário mínimo nas equipes daqui para completar os rendimentos. Mas fiquei apaixonado pelo futelama e preferi organizar os torneios", conta Frota. "É um esporte do povão. Não é para elite, não. Não pode elitizar com muitos equipamentos e regras", teoriza o dirigente da lama.

O regulamento é o mesmo do futsal, mas a particularidade é que o horário das partidas só é decidido após consultas à tábua de marés fornecida pela Marinha. Apesar de estar a 400 quilômetros de distância, o Oceano luta diariamente com as águas do Amazonas e influencia nas vazantes e cheias em Macapá.

Esse mesmo combate entre a maré atlântica e a correnteza fluvial gera a famosa pororoca, mais forte na luas cheias ou novas. As ondas marrons de até quatro metros de altura que percorrem incríveis 50 quilômetros criaram outro esporte típico do Amapá: o surfe na pororoca, que também conta com calendário e circuito de competição.

Existe futelama em Belém e Manaus também, mas a consistência da lama não é a mesma. No Pará, é mais barrenta. No Estado do Amazonas, há mais areia. Outros lugares do Brasil e do mundo promovem jogos em locais pantanosos, mas em Macapá as condições são únicas, porque o jogo é só uma parte da batalha dos elementos da natureza na cidade cortada pela linha do Equador.

Quando o rio se afasta, o fundo dele se revela compacto e liso, mas uma camada de uma espécie de gel de limo deixa a superfície tão escorregadia que os jogadores não correm, eles patinam. É excelente para dar carrinhos quilométricos, mas é péssimo para quem tenta se equilibrar entre dribles, arrancadas e brecadas.

Antes das partidas, os jogadores limpam o terreno das coisas que a correnteza traz. Um tronco vira logo banco de reserva. Plásticos diversos ficam amontados perto da bandeira de escanteio. Uma dezena de urubus ronda o campo de jogo como se formassem uma torcida organizada.

A praia de barro que viu o esporte nascer, no bairro de Santa Inês, acabou interditada para a prática depois que apareceu ali uma saída de esgoto. "Ficou um cheiro ruim que não dava para aguentar. E ainda a gente podia pegar alguma doença no meio de tanta merda", se queixa Frota.

"Antes, a gente tomava água das poças ao lado do campo para se hidratar nos intervalos. Agora ninguém se arrisca", relata Olivaldo Nunes, um dos pioneiros da modalidade e hoje coordenador da Secretaria Estadual de Esportes. O primeiro torneio, ainda no século passado, teve como prêmio à equipe vencedora um búfalo, animal tão adaptado ao brejo quanto os atletas do futelama.

Os estádios do futelama ganharam nomes como Surubim e  Catamarã, chamados assim pela sonoridade similar a  Morumbi e Maracanã. Hoje, a principal arena é vizinha ao restaurante Churrascaria do Sarney, cujo proprietário ostenta frondosos bigodes que lhe valeram o apelido em referência ao político maranhense que se instalou no Amapá eagora,vaiado até por lá,anunciou sua aposentadoria do poder.

O local fica entre os dois cartões postais da capital sem grandes atrativos: o atracadouro chamado de Trapiche Eliezer Levy e a fortaleza que os portugueses ergueram ali em 1782 para proteger a entrada do rio Amazonas e afugentar as pretensões francesas sobre a "Guiana Brasileira" – até hoje, o Estado em forma de diamante não tem ligação por terra com o resto do país.

Mais ao norte, no bairro Perpétuo Socorro, uma arquibancada de madeira virada para o rio denuncia que ali há também um estádio do futelama. A escadaria que levava ao campo foi levada pela correnteza. Já as traves dos gols, que ficavam ilhadas na enchente, de tanto serem tragadas pelo rio acabaram acorrentadas à arquibancada.

Zerão tem a linha do Equador como meio de campo

Mas o estádio oficial mesmo da Amapá é o Zerão. Dentro dele, a imaginária linha do Equador vira real. É a linha do meio de campo. Cada hemisfério terrestre é representado por um lado do gramado.

Hoje em dia, a construção de estádios não garante popularidade, que o diga a presidente Dilma Rousseff. Contudo, na última ditadura militar (1964-1985),  os generais contentavam as populações locais espalhando gigantes de concreto batizados sempre com o sufixo "ão". Os estádios Castelão, Vivaldão, Verdão e Machadão são testemunhas dessa história e ironicamente foram demolidos para o surgimento das modernas arenas de Fortaleza, Manaus, Cuiabá e Natal para a Copa do Mundo.

Mas nenhum nome é mais inocentemente sarcástico do que Zerão, estádio que reivindica ser o único do mundo cortado pelo Equador. A apelido evoca um aumentativo do nada e mais parece um comentário sobre a nulidade de sua construção. Por lá, o pontapé inicial dos jogos são dados na latitude 0.0 do globo terrestre. O capitão da equipe que ganha no cara e coroa do árbitro escolhe em que hemisfério quer jogar. A maioria prefere o hemisfério norte. Não é uma decisão geopolítica: o vento em geral sopra nessa direção e ajuda os times a atacarem.

A construção do Zerão revela a obsessão do Brasil com o futebol. Enquanto Londres estabeleceu o meridiano 0 com o observatório astronômico de Greenwich, Macapá preferiu erguer um elefante branco.

Logo após sua inauguração, em 1990, uma tempestade arremessou para longe a cobertura da única arquibancada. A empresa que construiu o estádio não tinha experiência nesse tipo de obra e colocou os postes dos refletores de iluminação entre o público e o campo, ou seja, nenhum torcedor tinha visão total das partidas. O Zerão ficou fechado quase dez anos, quase virou ruína e só foi reformado e reinaugurado em 2014, curiosamente ao mesmo tempo das arenas da Copa do Mundo – claro que Macapá nunca teve pretensões de receber o Mundial.

Em agosto, quando a Copa já for passado, começa o torneio estadual de futelama no Amapá. Assim é o tempo circular do futebol, que parece imitar os ciclos da natureza. Os campeonatos se sucedem como as cheias e vazantes do rio Amazonas.

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