Ídolo que peitou Pinochet diz que Fifa nunca reconhecerá 'jogo da vergonha'

Bruno Freitas

Do UOL, em São Paulo

  • Reprodução e AFP

    Carlos Caszely teve a mãe torturada pela ditadura e foi ícone da resistência contra Pinochet no Chile

    Carlos Caszely teve a mãe torturada pela ditadura e foi ícone da resistência contra Pinochet no Chile

Poderia até ser um lance antológico, afinal foram 13 toques em menos de 30 segundos em uma linha de passe, logo na saída de bola, em um dos mais rápidos gols dos embates entre seleções nacionais. Na verdade, porém, tudo não passou de uma encenação patética, na partida que classificou o Chile para a Copa de 1974 em episódio que recentemente completou 40 anos.

No jogo em questão, a União Soviética se recusou a disputar o segundo confronto da repescagem da Copa no estádio Nacional de Santiago, então improvisado como local de torturas na ainda incipiente ditadura de Augusto Pinochet. A Fifa (Federação Internacional de Futebol) ignorou os protestos, autorizou o confronto após uma vistoria protocolar e acabou carregando para a posteridade um dos capítulos mais sombrios de sua história.

O atacante Carlos Caszely esteve em campo naquela "partida" de 21 de novembro de 1973, apenas dois meses após o golpe de estado que levou os militares ao poder e que acabou com a morte do então presidente socialista Salvador Allende. Ícone da resistência contra a ditadura Pinochet, o ídolo da seleção chilena e do Colo-Colo teve a mãe barbaramente torturada pelo regime e, semanas depois, se recusou a dar a mão ao ditador em uma cerimônia antes da viagem para a Copa na Alemanha. Hoje, ao revisitar o episódio em contato com o UOL Esporte, diz não acreditar que a Fifa manifeste qualquer espécie de mea culpa pelo "jogo da vergonha".  

"Normalmente a Fifa não se pronuncia sobre os problemas políticos dos países. Inclusive a Fifa ameaça a todos os países (federações) influenciados por seus governos. A Fifa tem um sistema completamente diferente. Para uns é bom, para outros, não", afirmou Caszely em entrevista por telefone, desde Santiago.

Antes de virar uma data emblemática para os americanos, o 11 de setembro começou a assombrar a vida dos chilenos a partir de 1973. Nesta data, Pinochet tomou o poder invadindo na base da força o palácio de La Moneda, em ação que vitimou Salvador Allende - a versão oficial fala em suicídio -, presidente eleito por vias democráticas três anos antes. Nas semanas seguintes, milhares de pessoas com alguma ligação ou simpatia pelo governo deposto foram presas, torturadas e mortas. Então o estádio Nacional acabou se convertendo em uma espécie de campo de concentração, com uma área de execução bem no círculo central. Os vestiários, por sua vez, serviam como prisão ou zona de interrogatório.

Eram tempos de Guerra Fria. Como a União Soviética mantinha relação estreita com o governo de Allende, e o golpe militar contara com o patrocínio americano, a partida da repescagem da Copa virou um imbróglio político-diplomático. Inicialmente, as autoridades do futebol chileno internamente sugeriram que o confronto entre os representantes europeu e sul-americano fosse levado para o estádio Sausalito, em Viña del Mar. No entanto, a junta militar que passara a comandar o país bateu o pé – era importante manter o estádio Nacional como palco do jogo para mostrar ao resto do mundo que os rumores de violações aos direitos humanos não passavam de "intriga da oposição".

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mortos pela ditadura

de acordo com último relatório oficial divulgado pelo governo chileno, em 2011, sobre os 17 anos de regime militar (1973-1990)

Antes disso, em 23 de setembro, os chilenos seguraram um empate por 0 a 0 em Moscou, na partida de ida da repescagem. Em seguida, durante os dois meses que separaram as datas do confronto, os soviéticos emitiram uma nota em que diziam que não concordavam com a partida em um local em que pairava suspeitas de torturas. Os europeus sugeriram então a decisão em um campo neutro, em outro país da América do Sul.

Como resposta aos protestos soviéticos, a Fifa enfim enviou a Santiago uma delegação para inspecionar o estádio Nacional, encabeçada por um vice-presidente, o brasileiro  Abilio d'Almeida, e o secretário-geral, o suíço Helmuth Kaeser. Assim, em 24 de outubro, a comitiva estrangeira visitou o estádio Nacional, que dias antes passara por um esforço de limpeza de qualquer evidência que sugerisse que ali fosse um centro de prisão e tortura. Finalmente a entidade autorizou a partida.

Como prometido, os soviéticos não apareceram e ainda tiveram que pagar US$ 1 mil de multa. Mas para reforçar que o adversário fugiu da disputa, os chilenos mantiveram a partida. Com 18 mil pessoas no estádio, em um domingo ensolarado, cumpriram o protocolo à risca. O time entrou em campo, acenou para os fãs e ouviu respeitosamente o hino nacional. A vitória por WO já estava sacramentada [foi oficializa pela Fifa em janeiro de 1974], mas mesmo assim a seleção da casa protagonizou a cena do gol contra um rival inexistente e uma meta vazia.

Segundo Caszely, em nenhum momento os jogadores da seleção chegaram a considerar um boicote ao jogo.

"Como te disse antes, 95% dos jogadores de futebol não falam de outra coisa que seja de carros de luxo, mulheres de verdade. Não se fala muito de política. E nessa época também não se falou. A gente viajou com a seleção (para a Copa) por respeito. Primeiro porque a seleção representa um país, não representa o estado, não representa o governante da vez. O futebol é tão grande, tão grande, que representa algo diferente da vida em geral", declarou o ex-jogador.

O atacante sabia que era uma exceção. Jogador do Colo-Colo desde 1966, Caszely nunca ocultou seu apoio à Unidade Popular, coalizão de partidos de esquerda que levou Salvador Allende ao poder em 1970. Com esta marca, o jogador acabou atingido pessoalmente pouco depois do golpe, quando sua mãe, Olga Garrido, foi presa e torturada durante dias. Depois, antes de viajar para o Mundial da Alemanha, o ídolo fez questão de deixar Pinochet com a mão estendida no ar durante uma recepção oficial dos jogadores da seleção. Um gesto emblemático e corajoso, mas que poderia agravar a situação de sua família no país.

"Depois que uma mãe é torturada, não existe nada, nada que te faça sentir medo. Nada que possa expressar os sentimentos de um ser humano. Eu sempre digo que o ser humano tem a obrigação de falar, não somente quando uma mãe é torturada, mas quando sabem ou veem que pessoas são torturadas por pensamentos diferentes. Eu creio que o ser humano tem todo o direito de pensar diferente, mas não por isso ser maltratado, assassinado ou torturado", comentou sobre o episódio.

Na Copa de 1974, o Chile teve a missão dura de estrear contra a anfitriã Alemanha Ocidental. Caszely foi expulso neste jogo, após revidar uma entrada de Berti Vogts. No Chile, a imprensa obediente ao regime militar foi duríssima com o jogador de esquerda, o cobriu de críticas.  Nos anos seguintes, apesar de ser um dos melhores do país, enfrentou um boicote nas convocações.

A partida que não aconteceu entre chilenos e soviéticos recentemente inspirou um documentário produzido pela ESPN americana, em sua premiada série 30 por 30. O filme "The Opposition", assinado pelos diretores Ezra Edelman e Jeffrey Plunkett, teve sua primeira exibição na TV dos EUA no último dia 22 de abril.

O episódio incômodo para a história das Copas do Mundo da Fifa ainda inspirou textos e trabalhos de diversos intelectuais pelo mundo.  O escritor uruguaio Eduardo Galeano foi um deles, denominando o caso como "a partida mais patética da história do futebol".

ESTEVE NO PLEBLISCITO CONTRA DITADURA; FIGUEROA APOIOU REGIME

Diante da pressão internacional, o governo do Chile organizou um plebiscito em outubro de 1988 para decidir se Augusto Pinochet deveria ou não seguir à frente do país até 1997. Contando com a máquina do estado a favor, a ditadura confiava na vitória, mas acabou derrotada nas urnas por uma margem apertada, depois de uma campanha dura.

O "Não" ao regime venceu com 55,99% dos votos, em uma campanha que contou com engajamento de Carlos Caszely. O ex-jogador apareceu em rede nacional para compartilhar com os chilenos a sofrida história familiar, falando sobre a mãe presa, torturada e estuprada pelo regime militar. Dona Olga Garrido também participou com um testemunho corajoso na TV.

Do lado do "Sim", outro jogador de renome nacional se expôs ideologicamente. Nada menos do que Elias Figueroa, mais um integrante daquela seleção de 1973-74. O ídolo do Inter de Porto Alegre apoiou abertamente a campanha de Pinochet, mas Caszely hoje evita censurar o antigo companheiro.

"É correto, aconteceu [que Figueroa estava do lado contrário]. Por isso eu digo que os pensamentos das pessoas são totalmente diferentes. Eu gosto da democracia, não gosto da ditadura. E outros companheiros que apoiaram a campanha do 'Sim' estão em seu legítimo direito, porque isso é a democracia", diz Caszely.

Nota: Figueroa declarou em entrevistas recentes que esteve ao lado de todos os presidentes do Chile, sempre "a favor do povo"

JUNTO COM SÓCRATES EM FILME DE CANTONA: REBELDES DO FUTEBOL

Em 2012, Caszely teve sua história incluída no documentário "Football Rebels", que relata a experiência de cinco jogadores internacionais na luta pela democracia em seus países. O filme conta com a apresentação do francês Eric Cantona e traz a vivência de engajamento social de nomes como Sócrates, Didier Drogba e outros.

O filme foi lançado meses depois do falecimento de Sócrates, morto em dezembro de 2011. Caszely relata que teve uma relação breve, mas entrosada com o ídolo brasileiro.

"Com Sócrates conversei em algumas oportunidades, quando jogamos entre Chile e Brasil em seleções. Também tomamos um café no Chile e conversamos sobre a possibilidade da democracia no mundo de hoje, em nossos países", afirma.

"Quando o documentário estava pronto, nos juntamos todos em Marselha. Menos o Sócrates, que tinha falecido em dezembro. E não tivemos a oportunidade de compartilhar um café mais, como havíamos combinado. Ou então, um café e um cigarro", conclui o chileno.

CASZELY ERA BOM DE BOLA E QUASE JOGOU COM PELÉ NO SANTOS

Carlos Humberto Caszely Garrido acabou ficando internacionalmente mais conhecido por seu envolvimento na luta contra a ditadura no Chile, mas seu histórico esportivo é dos mais dignos. Tido como o maior ídolo da história do Colo-Colo, é até hoje o único chileno a terminar como artilheiro da Libertadores [9 gols na edição de 1973].

Com apelido de "rei do metro quadrado", em razão da facilidade de ação em pequenos espaços, Caszely se destacou na Taça Independência, espécie de mini-Copa que o Brasil organizou em 1972, com 20 seleções de todo o mundo. O chileno foi um dos artilheiros e na época recebeu uma oferta para reforçar o Santos de Pelé, mas acabou recusando.

"Não foi possível, porque eu estava neste momento na universidade e queria terminar meus estudos", justifica o ex-jogador chileno, que depois defendeu Levante e Espanyol, na Espanha, e o New York Cosmos, nos EUA. 

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