Não consigo entrar no quarto dele, diz mãe que perdeu o filho no Itaquerão

Adriano Wilkson

Do UOL, em São Paulo

Três dias depois de enterrar o filho, Sueli entrou no quarto em que ele passou a maior parte de seus 23 anos.

Tudo estava como ele deixou.

As roupas espalhadas pelo chão (porque ele jogava tudo fora do armário antes de encontrar a camisa que queria).

A bacia de tanque que eles tinham transformado em sapateira (porque eles não podiam comprar uma sapateira de verdade).

O aparelho de som portátil que ele ligava todo dia ao acordar, tocando funk bem alto (para despertar toda a casa).

Os desodorantes, os perfumes, o espelho, os tênis e as camisas de marca (porque ele era muito vaidoso e ia ao canteiro de obras como se estivesse indo a uma festa).

Ela ficou lá por menos de quinze minutos. Não conseguiu tocar em nada.

Não conseguiu não lembrar da última vez que viu o filho, no sábado anterior, na cama do hospital, com sangue escorrendo pelo ouvido.

Ela tentou ter outra lembrança. E percebeu que tudo na casa lembrava Fabio.

Na sala, a porta por onde ele entrava depois do trabalho dizendo "Neguinha, chegueeeei! Cadê a minha comida?" Neguinha era a irmã, Sara. Ela respondia que não era empregada dele (mas a comida estava na mesa).

No quarto de Sueli, o ursinho de pelúcia preto e branco que tinha sido de uma namorada de Fabio e que ele pedira de volta para dar à mãe. Ela diz que vai guardá-lo para sempre.

Na cozinha, a panela de arroz que ele deu de presente depois de receber o primeiro salário em janeiro.

E ainda o fogão novo, que ele comprou em várias prestações no começo da semana em que morreu.

Na sexta, ele tinha pedido para Sueli estrear o fogão assando um bolo de cenoura. Ela disse que faria no sábado.

No sábado, ela recebeu uma ligação dizendo que Fabio tinha sofrido um acidente e estava no hospital. Ela correu para pegar o trem, e depois o metrô, e depois correu até o hospital.

Lá ela ouviu que o filho passaria por cirurgia e começou a rezar.

Ela entrou em desespero quando soube que a cirurgia tinha fracassado.

Cinco dias depois de Fabio ter caído de uma altura de oito metros no Itaquerão, ela ainda fala dele com os verbos no presente: o Fabio é assim, é assado, o Fabio gosta disso, gosta daquilo...

"É difícil acreditar que ele morreu", diz ela.

A morte de Fabio Hamilton da Cruz, a oitava em obras da Copa, ainda será o tema de muitas reportagens ao longo das próximas semanas na medida em que uma investigação policial aponte os responsáveis por ela.

Em uma entrevista coletiva na última quinta-feira, Sueli e uma tia disseram que ele já havia reclamado das condições de segurança no canteiro e que a família vai processar as empreiteiras envolvidas na obra.

Após a entrevista, a reportagem conversou com as duas não sobre as circunstâncias da morte dele, mas sobre sua vida.

Elas contaram sobre o dia em que Fabio, que estava desempregado, chegou em casa esbaforido com a notícia de que tinha conseguido o trabalho dos sonhos: ajudar na construção do estádio do Corinthians, seu time do coração.

Ele estava esbaforido porque tinha passado o dia todo correndo pela cidade, levando para lá e para cá documentos, fotocópias e toda a sorte de burocracias necessárias para você conseguir um emprego formal.

A tia Denivia, de quem ele tomava benção todo dia, sempre lhe explicava sobre a importância de ter um emprego, de ter o próprio dinheiro para comprar as coisas dele.

E tinha sido a própria tia Denivia que uma vez lhe arranjara um trabalho em que ele passava o dia todo lixando puxadores de portas e gavetas.

Antes disso, na adolescência, Fabio trabalhou vendendo amendoim na rua. Depois, já adulto, se encontrou no canteiro de obras. "Ele adorava esse trabalho", diz Denivia.

Seu salário de R$ 1067 brutos ajudava a manter a casa, onde viviam outras quatro pessoas. Ele é descrito pela família como alguém que adorava contar piadas e comer muito.

"Ele podia ficar chateado com alguma coisa", conta Denivia, "mas nunca era estúpido, nunca tratava ninguém mal."

Quando se pede a Sueli uma visita à casa onde Fabio morava, ela primeiro diz que sim, e depois lamenta, meio se desculpando: "Ai, pode ir, mas não repara porque não é assim como aqui, não tem reboco na parede, no chão, é tudo muito simples."

Por sugestão de seu advogado, ela convocou os jornalistas para anunciar que vai pedir às empresas envolvidas na obra do estádio uma indenização de R$ 1 milhão por danos morais e materiais, além de uma pensão vitalícia para si mesma.

A entrevista coletiva aconteceu na luxuosa sede da Ademar Gomes Advogados Associados, localizada em um bairro nobre da capital, um lugar que já foi comparado pelo jornal Folha de S.Paulo a "um templo da Grécia antiga", por abrigar colunas em mármore, estátuas e quadros de aves, além do nome do chefe entalhado em todo canto.

Gomes, que é famoso por trabalhar em casos de grande atenção midiática, espera que o processo judicial pela morte de Fabio termine em três anos.

Sueli e Denivia dizem confiar na proteção do escritório: elas evitaram até hoje voltar ao canteiro de obras para recolher a mochila de Fabio porque estavam sem advogado e tinham medo de "serem enroladas".

Depois do enterro, elas saíram de São Paulo e foram ao interior do Estado para fugir do assédio de jornalistas ávidos por declarações.

Na última tarde, quando finalmente falou com a imprensa, Sueli exprimiu diferentes sentimentos.

Chegou a sentir raiva e levantou a voz ao dizer que não vai permitir que culpem seu filho por sua própria morte: "Se eles tivessem colocado uma rede de proteção antes, ele estaria vivo", ela disse.

Angustiou-se ao lembrar que jogaram areia sobre o local onde o filho caiu: "Não sei se para cobrir o sangue ou para cobrir outra coisa."

Se disse com remorsos por não ter feito o bolo de cenoura que ele pediu: "Não paro de pensar nisso."

"Essa tem sido a semana mais difícil da minha vida", ela contou a uma jornalista que a entrevistava. Ela não deseja que ninguém passe pelo que ela está passando. Mãe nenhuma deveria ter que enterrar o filho. Ela nunca vai apagar da mente a imagem do rosto dele morto.

Ela começa a chorar e recebe um abraço da repórter.

Mas se conversar um pouco mais com ela, você também vai poder vê-la sorrindo.

Seu luto até parece ter passado quando ela começa a gargalhar e explica como ralhava com Fabio porque ele perdia horas se embonecando na frente do espelho e arriscava se atrasar para o trabalho.

"Eu podia ficar o dia todo falando sobre ele", ela diz antes de se despedir.

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