Eleição de Havelange na Fifa faz 40 anos. Copa no Brasil está ligada a isso

Do UOL, em São Paulo

É significativo que 12 de junho tenha sido a data escolhida para a abertura da Copa de 2014. O primeiro jogo do Mundial realizado no Brasil acontecerá um dia depois da eleição de João Havelange à presidência da Fifa ter completado 40 anos. A trajetória do dirigente de 98 anos, que renunciou à presidência da honra da entidade em 2013, 12 dias antes da publicação de um relatório do comitê de ética comprovando que ele recebeu propinas milionárias, tem relação direta com a escolha do país-sede do evento deste ano.

Filho de um comerciante belga, Havelange foi o primeiro –e até hoje o único– presidente da Fifa que não nasceu na Europa. Com ele no comando, a entidade se aproximou do mercado, aumentou seu faturamento e buscou novos horizontes –muitos deles sem tradição no futebol.

Havelange presidiu a Fifa entre 1974 e 1998. Esse período foi prolífico no plano de expansão da entidade, mas também marcou uma série de denúncias. Com o brasileiro no comando, a entidade se aproximou do poder, criou laços políticos e instituiu práticas ilícitas.

Acometido por uma infecção respiratória, Havelange está internado no Hospital Samaritano, no Rio, desde a última quarta-feira. Ele tem quadro estável, mas segue sem previsão de alta. Para quem já se considerou o homem mais poderoso do mundo, também é significativo que ele esteja nessa condição pouco antes de a Copa acontecer em seu país-natal.

Veja como a ascensão de Havelange na Fifa influenciou a escolha do Brasil como sede da Copa:

Havelange vence Stanley Rous e assume a Fifa

No dia 11 de junho de 1974, dois dias antes da abertura da Copa do Mundo, o 39º Congresso da Fifa teve como pauta a eleição presidencial da entidade. Concorriam o inglês Stanley Rous e o brasileiro João Havelange, que havia representado o país na natação dos Jogos Olímpicos de Berlim-1936 e presidia a CBD (Confederação Brasileira de Desportos) desde 1958. Na primeira rodada, na qual era necessário angariar dois terços dos votos, Havelange venceu por 62 a 58. Na segunda, em que valia maioria simples, o brasileiro triunfou por 68 a 52.

A Fifa tinha 142 membros efetivos na época, mas três não tinham direito a voto (África do Sul, Rodésia e Chade). No processo eleitoral, Havelange visitou 84 deles. No livro "Um jogo cada vez mais sujo", o jornalista inglês Andrew Jennings relata compra de votos –foram pelo menos US$ 5 milhões investidos pelo brasileiro em "agrados" aos dirigentes que participaram da eleição, e esse montante teria saído dos cofres da CBD. Até hoje, Havelange é o único não-europeu a ter presidido a Fifa.

A expansão territorial e política da Fifa

Uma das promessas de campanha de Havelange em 1974 foi ampliar o número de vagas de África, Ásia e Concacaf (América Central e América do Norte) na Copa do Mundo. A Copa daquele ano foi disputada por 16 seleções, e o Mundial teve 32 participantes em 1998.

Além disso, o número de integrantes da Fifa aumentou muito. "Há mais países filiados à minha organização do que às Nações Unidas", disse Havelange ao livro "Como eles roubaram o jogo", do jornalista David A. Yallop.

Essa expansão territorial serviu para estreitar as relações da Fifa com o poder. "Quando vou à Arábia Saudita, o rei Fahd me recebe de forma esplêndida. O senhor acha que um chefe de Estado teria tanto tempo assim para uma pessoa comum? Isso é respeito. Essa é a força da Fifa. Converso com todos os presidentes, mas eles conversam também com um presidente de igual status. Eles têm seu poder, e eu tenho o meu: o poder do futebol, que é o maior poder existente na Terra", respondeu Havelange a Yallop, que perguntou se o brasileiro se considerava em 1998 o homem mais poderoso do planeta. O brasileiro visitou 191 países pelo menos três vezes durante os anos em que comandou a entidade responsável pelo futebol mundial.

A Fifa se aproxima do mercado

Antes de assumir a presidência da Fifa, João Havelange havia trabalhado na Viação Cometa, uma companhia de ônibus focada em viagens intermunicipais. Ele chegou a usar a empresa como modelo no período em que comandou a CBD.

"Apliquei aos problemas da seleção nacional os mesmos princípios de organização que usei na Viação Cometa", relatou Havelange. "A única diferença está nos detalhes. A necessidade de um conceito administrativo baseado em uma diretoria é bastante comum", completou.

Na Fifa, o brasileiro também se aproximou do mercado. O alemão Horst Dassler, dono da fabricante de material esportivo Adidas, foi um dos artífices da campanha de Havelange em 1974. Ele também foi intermediário da relação entre a entidade e a Coca-Cola, que começou a patrocinar o Mundial de juniores em 1977. Quatro anos depois, o evento já gerava US$ 600 mil em aportes.

A relação entre Adidas e Fifa foi muito estreita no período em que Havelange comandou a entidade. O processo transformou o esporte num negócio milionário. Na Copa do Mundo de 1974, a primeira organizada por Havelange, a Fifa obteve receitas de US$ 11 milhões. Já na Copa de 1994, a última de Havelange na Fifa, a arrecadação foi de US$ 230 milhões.

Fifa cria torneios e os espalha futebol pelo planeta

O aumento do número de filiados foi uma das formas de Havelange consolidar seu poder na Fifa, mas isso também criou um desafio: agradar politicamente a um número maior de países. Uma das soluções que a entidade encontrou para isso foi criar mais torneios e levá-los a regiões diferentes.

Com Havelange na Fifa, a Copa do Mundo foi a mercados que eram pouco tradicionais no futebol, como Estados Unidos e Coreia do Sul/Japão. A entidade também espalhou competições de base, futebol feminino, futsal e até de clubes por países de regiões como o Oriente Médio e o Sudeste Asiático.

Entender esse processo é fundamental para saber por que a Copa do Mundo de 2014 vai ser realizada no Brasil. Depois da saída de Havelange, a Fifa manteve a ideia de buscar mercados e economias emergentes. Isso justifica as escolhas de África do Sul (2010), Brasil (2014), Rússia (2018) e Qatar (2022).

Alguns desses processos, aliás, foram permeados por acordos políticos. O Brasil, por exemplo, conseguiu articular para ser candidato único a receber o Mundial de 2014. A escolha do Qatar para 2022 é ainda mais conturbado. O processo está sob investigação, e o jornal inglês "Sunday Times" disse ter documentos que comprovam US$ 5 milhões compraram votos de membros do comitê-executivo da Fifa.

A Copa virou "do Mundo" também da TV

A abertura da Fifa ao mercado e a países menos tradicionais foi apoiada por um plano para colocar o futebol na TV mundial. Esse processo foi apoiado pela ISL, empresa suíça de marketing esportivo que havia sido criada por Horst Dassler.

A ISL teve acordos com Fifa, COI (Comitê Olímpico Internacional) e Iaaf (Federação Internacional de Atletismo). A empresa era responsável por negociar direitos de transmissão da Copa do Mundo, que atingiu 3,2 bilhões de espectadores em todo o planeta em 2010. A ISL não chegou a participar dessa edição: a empresa quebrou em 2001, com uma dívida milionária e uma série de acusações de desvio de dinheiro.

O caso respingou drasticamente em Havelange, que chegou a pagar 5,5 milhões de francos suíços à Justiça da Suíça em 2010 para que o nome dele não fosse revelado em processo que investigava à ISL. Em 2012, o Supremo Tribunal da Suíça concluiu que o assunto era de interesse público e revelou que o ex-presidente da Fifa e Ricardo Teixeira haviam levado propinas milionárias nos processos de venda de direitos de mídia de competições da Fifa.

Segundo o livro "Um jogo cada vez mais sujo", do jornalista inglês Andrew Jennings, Havelange levou US$ 45 milhões em dinheiro desviado de contratos intermediados pela ISL. Ricardo Teixeira embolsou outros US$ 9,5 milhões.

Depois da falência da ISL, o grupo alemão Kirch herdou contratos e problemas da Fifa. No livro "Um jogo cada vez mais sujo", Jennings condiciona a isso a escolha da Alemanha como sede da Copa do Mundo de 2006.

Um "herdeiro" na CBF

Em 1989, Havelange apoiou a eleição de seu então genro Ricardo Teixeira para a presidência da CBF. Teixeira transformou a entidade em uma "máquina de fazer dinheiro" e recolocou a seleção brasileira no caminho das vitórias em Copas do Mundo. Assim como Havelange, ele conquistou dois Mundiais como presidente da CBF. Teixeira tornou-se influente, e começou a costurar planos de levar a Copa para o Brasil. Havelange chegou a resistir à ideia, mas depois acabou a apoiando.

Em abril de 2013, o comitê de ética da Fifa publicou relatório apontando que Havelange e Teixeira receberam propina da ISL, empresa de marketing que foi parceira da Fifa. O processo ilícito também beneficiou Nicolás Leoz, que na época era presidente da Conmebol (Confederação Sul-Americana de Futebol).

O relatório diz que Havelange e Teixeira receberam propina da ISL entre 1992 e 2000, período em que não havia um código de ética da Fifa – a primeira versão do documento é de 2004. Como renunciou à presidência de honra da entidade em 18 de abril, 12 dias antes da divulgação do documento, Havelange escapou de punição.

Ex-secretário, Blatter consolida processos de Havelange

O processo de sucessão de Havelange na Fifa também foi permeado por denúncias e conchavos. Em 2013, Jack Warner, ex-presidente da Concacaf, admitiu ter recebido R$ 6 milhões para construção de um centro de treinamento em Trinidad e Tobago. Em troca, teria de apoiar Joseph Blatter, ex-secretário-geral, na eleição presidencial de 1998. O acordo foi costurado por João Havelange.

"Blatter jamais teria sido presidente sem os 30 votos da Concacaf", disse Warner, que na época já havia migrado para a oposição. Ele renunciou a todos os cargos que ocupava após ter sido envolvido em escândalos de corrupção em 2011, na candidatura de Mohamed Bin Hammam, presidente da Confederação Asiática de Futebol, ao comando da Fifa –o processo era contra Blatter, que ficou no poder.

Outro nome fundamental para a eleição de Blatter em 1998 foi Ricardo Teixeira. O já ex-genro de Havelange era um dos cotados para a corrida presidencial da Fifa, mas abriu mão. Um dos motivos para isso foi a Copa de 2014.

"Blatter tinha de retribuir a Ricardo Teixeira o apoio para sua eleição. Que tal uma Copa do Mundo para você ganhar um bom dinheiro? Perfeito! Vamos dar um nome para isso: rotação de países-sede. Vamos dizer que cada continente terá a sua vez de sediar uma Copa. Ninguém na América do Sul, além do Brasil, teria condições de organizar uma Copa. Isso foi uma artimanha política. Se você prestar atenção nos contratos, uma empresa de Ricardo Teixeira vai ter participação no lucro gerado pela Copa para a CBF. O Brasil como sede de 2014 foi menos uma questão de propina, e mais uma questão de interesses políticos", opinou o jornalista Andrew Jennings em entrevista à revista "Época".

A eleição de Blatter consolidou uma série de processos estabelecidos no período de Havelange. A Fifa manteve interesse por mercados emergentes, aproximação com patrocinadores e busca por audiências cada vez mais globais, por exemplo. O "padrão Fifa" e todos os processos que serão visíveis nos próximos dias, na Copa de 2014, são exemplos claros disso.

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