Carrasco e soldado em 50, Ghiggia e Zagallo enfim se conhecem no Maracanã

Danilo Valentini

Do UOL, em São Paulo

O soldado da Polícia do Exército Mário Jorge Lobo Zagallo viu em diagonal o avanço de Alcides Ghiggia. Postado em uma escadaria de acesso da arquibancada no início da curva do escanteio do lado oposto ao lance, o alagoano de 18 anos assistiu, de longe, ao atacante uruguaio, em 16 de julho de 1950, sacramentar a mais dolorosa derrota da história da seleção brasileira. De perto, eles só se encontrariam mais de 63 anos depois, já ícones do futebol mundial. Onde? No gramado do mesmo Maracanã do fatídico Maracanazo.

O maior carrasco da seleção brasileira e o soldado que viraria tetracampeão mundial  - e que hoje se recupera num hospital do Rio de Janeiro de uma infecção - foram apresentados formalmente na manhã de 4 de novembro de 2013.

O intermediário do encontro histórico foi o norueguês Terje Liverod, ex-jogador que fez carreira na Dinamarca no final da década de 1970. Ele se envolveu com comércio exterior e agenciamento de jogadores como Diego Maradona para o mercado escandinavo antes de começar a escrever roteiros sobre histórias do futebol que ele conhecia.

Um desses roteiros era sobre o estrago causado por Ghiggia nas emoções dos brasileiros. Um produtor leu, gostou e decidiu apoiar a ideia de tirar o projeto do papel. Virou um documentário: "A Volta do Grande Pequeno Homem ("The Returno of the Little Big Man", no nome original em inglês), filme de 24 minutos com veiculação já programada por emissoras da Noruega e do Uruguai. A exibição no Brasil ainda depende da liberação do próprio Zagallo.

"Para mim era uma história fascinante, que me tocou o coração. Uma coisa entre dois jogadores históricos, que estavam no mesmo lugar e não se conheciam. O futebol merecia a possibilidade de ver os dois juntos contando uma história", diz Liverod, que tem 58 anos e mora em Montevidéu, onde descobriu os detalhes que o fascinaram sobre o feito da Celeste Olímpica no primeiro Mundial disputado no Brasil.

Gravada na saída do túnel dos vestiários do Maracanã, a entrevista acompanhada pela reportagem foi mais um bate-papo intermediado por Liverod entre Ghiggia, 88, e Zagallo, 82. O norueguês puxava os fatos históricos para que os dois ícones discorressem sobre as memórias, ainda muitos afiadas.

"Posso falar em português ou em portunhol errado mesmo, Alcides?", perguntou Zagallo, referindo-se de maneira respeitosa pelo primeiro nome de Ghiggia, que só havia voltado uma vez ao gramado do Maracanã desde 1950. Na ocasião, ele colocou seus pés na Calçada da Fama do estádio, em um evento em dezembro de 2009.

Cada um falando em sua língua pátria e com Liverod conduzindo a entrevista num português carregado de sotaque, Ghiggia e Zagallo têm lembranças muito particulares do que aconteceu naquele 16 de julho.

Perguntado pelo entrevistador, Ghiggia foi sucinto e levemente irônico: "O que passou naquele dia? Ganhamos". Na época, porém, nem os uruguaios acreditavam no feito. A vitória por 2 a 1, entretanto, surpreendeu os argentinos e chocou os brasileiros.

Ghiggia lembrou que três dirigentes da federação uruguaia de futebol voltaram para Montevidéu na manhã de domingo, horas antes da final da Copa.  "Só ficaram o técnico, o preparador físico e os três massagistas". Mas, depois do gol, marcado quando faltavam 11 minutos para o fim do jogo, "a sensação foi de vitória, de conquista".

O então camisa 7 da Celeste não fazia ideia que Zagallo estava assistindo ao jogo no Maracanã enquanto passava pelo zagueiro Bigode para fuzilar a meta brasileira. "Todo mundo culpa o Barbosa, mas ele não teve culpa nenhuma", avalia o brasileiro. "A culpa foi minha", assume o uruguaio.

Descrito por Zagallo como "o maior velório que já aconteceu no Maracanã", o tamanho da derrota do Brasil foi sentido por eles imediatamente ao final do jogo. "Quando cheguei à tribuna para recebermos o troféu e as medalhas e vi toda aquele gente chorando, fiquei triste", admite Ghiggia. "Os lencinhos brancos que a torcida acenou para receber a seleção na saída do vestiário para o jogo serviu para enxugar as lágrimas depois da derrota", recorda-se Zagallo. "Mas eu não chorei, mantive a postura de um soldado", completou o Velho Lobo.

Vestindo "capacete e tudo", Zagallo dividia sua vida entre a Polícia do Exército e os treinos e jogos pelo juvenil do Flamengo. "Àquela altura, não fazia ideia que 8 anos depois eu estaria na Suécia ajudando o Brasil a ser o campeão que não conseguiu ser naquele dia que eu era soldado no Maracanã". O trauma de 1950, aliás, passaria pela cabeça do atacante brasileiro na final da Copa de 1958. "Quando a Suécia fez o primeiro gol, me veio o Maracanã na memória". O susto passou ao longo dos 90 minutos, com Zagallo marcando o último gol dos 5 a 2 para o Brasil.

Conversando sobre aquele dia histórico, os dois terminaram a gravação e saíram pelo gramado do Maracanã batendo papo, com Zagallo apontando o dedo para o local onde guardava posto como soldado e espectador da derrota. Foi a última partida de Copa na qual o Brasil vestia branco. No Mundial seguinte, na Alemanha, estreava a camisa que o ex-jogador e ex-técnico sempre exaltou, a "amarelinha".

E a "amarelinha", estará no gramado do Maracanã em 13 de julho, dia da final da segunda Copa no Brasil? "Nunca mais aconteceu de uma equipe que joga em casa perder a final da Copa. Espero que tenhamos aprendido a lição. Mas precisamos de sorte", diz Zagallo, esquecendo que o primeiro título do Brasil foi justamente em cima de um anfitrião, a Suécia. Já Ghiggia endossa a força milhares de vezes evocada pelo Velho Lobo para fazer seu prognóstico: "A sorte tem sempre que ajudar", filosofa o carrasco do Maracanazo.

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