A Copa e o legado que não veio: de quem é a culpa pela vergonha de Ronaldo?
Vinícius Segalla
Do UOL, em São Paulo
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Roberto Stuckert Filho/PR
Há mais responsáveis pelo fracasso das obras da Copa do que seria possível reunir em uma só fotografia
"E, de repente, chega aqui, é essa burocracia toda, uma confusão, um disse me disse, são os atrasos. É uma pena. Eu me sinto envergonhado, porque é o meu país, o país que eu amo, e a gente não podia estar passando essa imagem para fora"
Ronaldo Nazário, 23 de maio de 2014
De repente, Ronaldo se envergonha. De repente, é essa burocracia toda, essa confusão. De repente, a gente não "podia" estar passando essa imagem para fora. O que teria acontecido, assim, tão de repente? De quem seria a culpa por tão repentino acontecido?
Em 30 de outubro de 2007, o Brasil foi escolhido pela Fifa como sede da Copa do Mundo de 2014. O governo brasileiro assumiu alguns compromissos e isenções para garantir a plena execução da organização da Copa da maneira que contratava com a Fifa. São as 11 Garantias Governamentais, posteriormente ratificadas por leis e decretos.
Agora, a duas semanas da Copa, Ronaldo constata que o plano falhou. Os estádios, bem, esses servirão para os jogos. Mais caros que o previsto, nem totalmente acabados, mas capazes de receber os jogos. Já as obras de mobilidade urbana, as reformas, modernizações e ampliações de portos e aeroportos, essas, em sua maioria, não saíram. Mais da metade do legado previsto não saiu. E isso poderá gerar problemas. Isso poderá fazer o país passar vergonha.
Ele mesmo admite: "A minha vergonha é pela população que esperava realmente esses grandes investimentos, esse grande legado de Copa do Mundo para eles mesmos, para população, reformas de aeroportos, mobilidade urbana. Tudo que foi prometido e não foi entregue. Tem estatística, é noticiado, 30% só vai ser entregue para a Copa do Mundo, essa é minha preocupação, minha vergonha. Maior prejudicado é a população", completou, em sabatina da Folha de S.Paulo, o ex-jogador.
Ronaldo sabe do problema, mas se exime de culpa. Ele e o ente de que é membro, o COL (Comitê Organizador Local da Copa, ligado à CBF e à Fifa), nao são responsáveis pelas obras que não saíram. Os estádios estão aí, e não se faz Copa com hospitais. Junto com Ronaldo, outros também, a duas semanas da Copa, procuram se eximir de culpa e apontar culpados. Alguém para acumular em seus ombros os protestos difusos, os reclames e as frustrações coletivas.
É o Governo Federal brasileiro, inventor da ideia de trazer a Copa para o país, coordenador de todo o planejamento, dono da maioria dos recursos financeiros injetados no projeto, o candidato natural a laranja de todos os erros e malfeitos da Copa. São eles os responsáveis pelos atrasos, pela incompetência e pela gastança da Copa. É deles que Ronaldo se envergonha. Mas só deles?
Ainda em 2007, mesmo ano da escolha do Brasil como sede da Copa, o governo federal solicitou aos governos estaduais e municipais das cidades-sede que passassem a planejar as obras que julgavam essenciais em suas praças para sediar o evento internacional. Os projetos para as cidades-sede foram apresentados pelas prefeituras e governos estaduais à União dois anos depois, em setembro de 2009.
Eles foram analisados, aprovados e priorizados para receber financiamento federal, por meio do Programa Pró-Transporte, com recursos do FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço) e operacionalizado pela Caixa Econômica Federal.
Com base neste planejamento, foi estabelecido um plano que previa todas obras e ações que deveriam ser executadas para o Brasil receber o torneio da Fifa. Assim, em 14 de janeiro de 2010, foi assinada a Matriz de Responsabilidades da Copa. Trata-se de um protocolo de cooperação federativa assinado entre União, Estados, municípios e o Distrito Federal que definia as responsabilidades de cada um dos entes no que se refere às fontes de recursos e execução dos projetos essenciais para a Copa. Uma lista de mais de 60 obras, dividida em três grandes áreas: estádios, mobilidade urbana e portos e aeroportos.
É este plano de obras de mais de R$ 25 bilhões que deveria ter sido executado e que não deu certo. São as obras constantes neste plano que não saíram. É a inexecução deste plano que está prestes a nos envergonhar.
Mas os pais desta vergonha são muitos. Mais de 90% das obras de mobilidade urbana previstas na Matriz são, eram ou seriam financiadas pelo governo federal para serem executadas exclusivamente por governos estaduais e municipais. Boa parte delas não saiu por culpa e falhas dos governos locais, que mesmo contando com recursos federais não lograram cumprir suas obrigações dentro do plano da Copa.
Não conseguiram porque falharam em realizar processos licitatórios idôneos, o que levou a interrupções judiciais dos procedimentos. Não conseguiram porque subestimaram os recursos necessários para as desapropriações requeridas. Não conseguiram porque colocaram em prática maus projetos, e depois executaram mal esses projetos, e foram necessárias refações. Não conseguiram porque inobservaram a legislação ambiental em vigor no país, e tiveram que paralisar, rever e até abandonar projetos. São quase tão variados os motivos quanto são as obras de mobilidade urbana que não vão ficar prontas.
Aqueles que falam em nome do governo federal têm criticado a cobertura da imprensa sobre a preparação do Brasil para a Copa. Dão a entender que órgãos de imprensa tendem a criticar em demasia a Copa por questões políticas, por desejo político de atacar a presidente e o partido ora no poder federal.
De qualquer forma, querendo ou não o governo federal, não é ele o único pai da Copa, nem de sua vergonha. Veja, abaixo, algumas obras previstas na Matriz de Responsabilidades da Copa que não vão sair por culpa de governos estaduais e municipais.
1 - Monotrilho de Brasília; não passou da licitação
Uma linha de VLT (Veículo Leve sobre Trilhos) era a principal obra de mobilidade urbana de Brasília para o Mundial de 2014. O sistema de trens urbanos deveria ligar o aeroporto ao terminal de ônibus da Asa Sul. A obra estava orçada em R$ 276,9 milhões. Desse valor, R$ 263 milhões viriam de recursos do governo federal e R$ 13,9 milhões seriam investidos pelo Distrito Federal.
O processo licitatório realizado pelo Governo do Distrito Federal foi concluído em 2010. No início do ano seguinte, já havia liminar na Justiça paralisando os trabalhos. Em abril de 2011, a Justiça determina a anulação do contrato da obra e a realização de uma nova licitação. É que houve fraude no processo, que teria sido feito, de acordo com a Justiça, para beneficiar empresas ligadas a José Gaspar de Souza, então presidente do Metrô do DF.
Diante do tempo exíguo e da complexidade da obra, o governo distrital, do governador Agnelo Queiroz (PT), anuncia a retirada da obra da Matriz de Responsabilidades da Copa. Atualmente, o projeto ainda não se encontra em execução.
2 - Monotrilho de São Paulo; a desistência em quatro tempos
A única obra que o Governo do Estado de São Paulo inseriu na Matriz de Responsabilidades da Copa em 2010 foi a Linha 17-Ouro do Metrô. Inicialmente orçada em R$ 3,1 bilhões, sendo R$ 1,082 bilhão em recursos federais, a linha terá 17,7 quilômetros de extensão e 18 estações. Quando assinou a Matriz, a promessa do governo estadual era entregar a obra toda a tempo da Copa do Mundo.
Já quando assinou o contrato com o consórcio vencedor para construir o monotrilho, em julho de 2011, os prazos eram outros. A previsão passou a ser entregar somente dois terços da obra até meados de 2014. O terceiro trecho passou a ter previsão de entrega para meados de 2015. Em novembro do mesmo ano, o Estado passou a dizer que, a tempo para a Copa do Mundo, apenas pouco mais de um terço da linha, ou 7,7 quilômetros, estariam prontos.
Já em novembro de 2012, após atrasos nas desapropriações necessárias para a obra, que enfrentaram contestações judiciais em virtude dos baixos valores indenizatórios ou problemas nas políticas de habitação relacionadas, o governador Geraldo Alckmin (PSDB) admitiu que o primeiro trecho da obra só deverá ficar pronto, se ficar, no final de 2014.
3 - Mobilidade urbana em Manaus; a incompetência compartilhada
O planejamento oficial de governo federal, Estado do Amazonas e Prefeitura de Manaus, estabelecido em janeiro de 2010, previa que a sede amazônica da Copa receberia investimentos da ordem de R$ 1,7 bilhão. O governo estadual comprometeu-se a construir uma linha de monotrilho, orçada em R$ 1,3 bilhão (sendo R$ 600 milhões em verbas federais). Já o município de Manaus assumiu a obrigação de fazer um sistema de corredores de ônibus integrado (BRT, ou Bus Rapid Transit, em inglês) no valor de R$ 290 milhões (sendo R$ 200 milhões dos cofres da União).
O plano de construção dos modais foi aprovado pelo Ministério das Cidades, e assim passou a constar na Matriz da Copa. Em novembro de 2011, porém, o MPF (Ministério Público Federal) afirmou publicamente estar disposto a pedir a anulação da concorrência pública aberta pelo governo do Estado para a construção do monotrilho, pois vinha alertando há mais de um ano o governo estadual que a concorrência então em curso para a construção da obra estava "eivada de irregularidades".
O governo estadual, porém, seguiu com o processo. Na hora de construir, porém, constatou-se que Estado e prefeitura não haviam se dado conta de que os projetos de monotrilho e BRT deveriam ter sido pensados juntos. Não haviam se dado conta, ainda que, em relatório datado de fevereiro de 2011, o MPF tenha apontado que a obra do BRT da prefeitura e a do monotrilho estadual passariam, em muitos pontos, pelas mesmas localidades, chegando até a ter pontos de parada previstos exatamente no mesmo local, o que seria impossível de operacionalizar, visto que as obras não estavam sendo construídas ou pensadas integradamente.
Então, na metade de 2012, o governo amazonense reduziu seu plano inicial do monotrilho a ser entregue até a Copa dos originais 39 quilômetros para menos da metade, ou 15,5 quilômetros. Já em novembro do mesmo ano, quando as obras ainda não tinham saído do papel, o então governador do Amazonas, Omar Aziz (PSD), e o prefeito eleito de Manaus, Artur Neto (PSDB), informaram à população que já não pensavam mais em construir os sistemas de transporte a tempo para a Copa, e que por isso estavam retirando as obras da Matriz.
4 - Salvador e o Metrô do novo milênio
Em janeiro de 2010, foi inserido na Matriz de Responsabilidades da Copa um projeto para construir dois corredores de BRT em Salvador. A empreitada custaria pouco mais que R$ 570 milhões.
R$ 28,5 milhões seriam destinados à contratação do projeto básico da obra e às indenizações resultantes das desapropriações. Esses recursos sairiam dos cofres municipal e estadual. Outros R$ 541,8 milhões sairiam de um financiamento da Caixa Econômica Federal aos governos locais. Este contrato chegou a ser assinado, em agosto de 2010, e a obra ficou a cargo do governo estadual, do governador Jaques Wagner (PT).
No fim de 2011, o Estado da Bahia entende que é necessário mudar radicalmente o plano de mobilidade urbana de Salvador para a Copa. A ideia de fazer o sistema de BRT é abandonada pelo governo estadual. A boa solução para o trânsito de Salvador é o metrô, é concluir e expandir o Metrô de Salvador.
A obras do metrô soteropolitano começaram junto com o novo milênio, no ano 2000. Deveriam ter durado 40 meses, mas já duram 170. Deveriam ter custado R$ 300 milhões, mas já consumiram R$ 780 milhões. Além disso, neste ano, foram gastos mais R$ 100 milhões na compra de novos trens, já que os originalmente adquiridos, em 2008, se deterioraram nos galpões onde estavam guardados. E o metrô não vai estar pronto na Copa.
5 - O legado em obras de Natal
Na capital potiguar, o Governo do Estado do Rio Grande do Norte e a Prefeitura Municipal de Natal dividiram as responsabilidades e as verbas federais para porem em prática o plano de mobilidade urbana da cidade para a Copa.
A duas semanas da torneio, eis o resultado: das dez obras de mobilidade que estão sendo tocadas pelo município, do prefeito Carlos Eduardo Nunes Alves (PDT), apenas seis vão ficar prontas até a Copa. Outras quatro empreitadas ficaram à cargo do Estado do Rio Grande do Norte, da governadora Rosalba Ciarlini (DEM), mas só duas serão entregues a tempo do Mundial.
Se a Arena das Dunas ficou pronta (e ainda falta instalar as cadeiras nas arquibancadas provisórias), as quatro obras previstas em seu entorno não ficaram. Entre elas está uma das principais intervenções previstas na cidade, um viaduto de 130 metros de comprimento na avenida Lima e Silva, ao lado do estádio. Conforme explica o secretário de Obras de Natal, Tomaz Neto, a estrutura estará pronta até a Copa, mas não poderá ser usada nem vista pelos cidadãos de Natal e pelos turistas.
Ela ficará "escondida" atrás de tapumes, para que ninguém veja os esqueletos e vigas expostas da obra incompleta. Embaixo dela, será feito um "túnel" cortando os tapumes, para que pessoas e veículos possam circular apesar da barreira que será a obra de mobilidade durante a Copa.
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