Amor extremo à seleção e fracasso na final levam Buenos Aires a violência

Adriano Wilkson

Do UOL, em Buenos Aires

As ruas de Buenos Aires ferveram após a seleção argentina perder a Copa do Mundo para a Alemanha, no Maracanã. Crianças declararam amor eterno ao time, adolescentes subiram em semáforos e carros de televisão, adultos soltaram fogos de artifícios e velhos acompanharam tudo com um sorriso de satisfação rasgado no rosto. A Argentina perdia, o povo fazia festa. "Nós argentinos somos uma raça estranha", admitiu Héctor, um senhor de cabelo branco que pulava e cantava como se a taça do mundo fosse ficar para sempre na América do Sul.

Isso foi antes de tudo ficar mais estranho ainda. Por volta das 22h, quatro horas depois do apito final no Maracanã, Buenos Aires pegou fogo literalmente. Violentos confrontos entre uma parte da torcida e policiais transformaram as ruas da capital em praça de guerra. Latas de lixo foram queimadas, o cheiro de plástico pegando o fogo empesteou o ar. Lojas foram saqueadas, sangue foi derramado nas calçadas. Garrafas voaram e se espatifaram perto de crianças, que corriam assustadas, chorando.

Um homem bêbado ameaçou bater na dona de uma lanchonete que demorou para lhe servir um sanduíche, e ela respondeu empunhando uma faca em direção ao agressor. De repente, a torcida que antes dava aula de espírito esportivo e fazia festa por um vice-campeonato tinha explodido em descontrole, em revoltas que levaram pelo menos 75 pessoas aos hospitais, entre civis e militares.

Os dois lados da moeda podem surpreender um estrangeiro pouco habituado às reações argentinas pós-derrotas. Mas, de acordo com os locais, tanto festas empolgantes, quanto revoltas violentas são parte da tradição das hinchadas argentinas que sofrem no campo. A reportagem do UOL Esporte testemunhou os dois estados de ânimo no domingo em que perderam a final da Copa.

Um sentimento que não se pode parar

Quando o juiz italiano Nicola Rizzoli apitou o final da partida no Rio e decretou mais quatro anos de jejum argentino em Mundiais, a maioria dos torcedores que lotaram a praça San Martín, no centro de Buenos Aires, aplaudiu e cantou que seu amor pela seleção nunca vai acabar. Alguns choravam copiosamente. Mas todos caminharam em procissão até o monumento do Obelisco, uma agulha de concreto no centro da cidade.

É lá que eles se reúnem após suas aventuras nas canchas de futebol, não importa se perdem ou se ganham. "Estamos juntos com o time nas boas e nas más", esclarece Héctor, enrolado em uma bandeira azul e branca. No começo, a procissão foi até o Obelisco quase silenciosa. Um rapaz com o agasalho do Boca enxugava a barba molhada pelas lágrimas, uma moça com o rosto albiceleste não cantava porque tinha o choro ainda engasgado: a derrota na final da Copa ainda parecia estar sendo digerida.

Em dez minutos, surgiram os primeiros cânticos nacionalistas, puxados quase sempre por um grupo de garotas de uns quinze anos que tentavam consolar os pais. Elas foram seguidas pelos adultos, e outras pessoas ensaiaram também sua própria reanimação pós-traumática: a derrota na final aos poucos ia ganhando clima de vitória moral.

Não demorou para os argentinos voltarem a entoar a música mais ouvida no Brasil e na Argentina no últimos mês, aquele cântico que pergunta aos brasileiros como eles se sentem tendo em casa "seu papai", o coro que fora sufocado desde os primeiros minutos da prorrogação no Maracanã.

Os torcedores, principalmente os mais jovens, enchem o peito para gritar alto as músicas do vasto repertório das arquibancadas argentinas. Todos parecem conhecer todas as letras. E parecem que acabaram de golear o maior rival na final do campeonato. Mas, como é impossível esquecer, a Alemanha vencera com um gol nos últimos minutos da prorrogação.

Um vendedor de cerveja tenta explicar a situação. "Veja bem, adoraríamos ter sido campeões, mas chegar na final já é motivo de alegria extrema. E os caras deixaram tudo no cancha, merecem nosso apoio", justifica ele, que vendia cerveja e dançava.

Alberto, um vendedor de roupas italiano que vive em Buenos Aires há mais de quatro décadas ("Sou mais argentino que qualquer coisa"), tem muita paciência ao tentar esclarecer o motivo da alegria argentina diante de uma frustrante derrota."A final foi muito parelha, decidida por uma questão de sorte. Qualquer um poderia ter vencido. Eu considero tanto Alemanha quanto Argentina campeãs da Copa."

Mas o gol de Götze a quatro minutos do fim, os quatro anos a mais de fila (já são 28), a frustração do vice-campeonato, tudo isso não deixa uma dor no fundo no coração, não dá vontade de ir para casa chorar? "Não em mim. Futebol é isso, a vida é isso. Um dia você ganha, outro você perde. E mesmo quando perde, você pode ser feliz", filosofa Alberto.

O choro do perdedor vira sangue

As coisas começaram a dar sinais de que poderiam sair de controle quando um homem puxou uma faca e tentou atacar um desafeto que passava ao lado de Alberto. O comerciante "mais argentino que qualquer coisa" estava elogiando Pelé e criticando Maradona, mas precisou desviar do desconhecido para não se ferir.

Ao redor, os vice-campeões começaram a fazer rodinhas e pular abraçados e dizer que quem não pulasse era brasileiro. Ou inglês. Ou alemão. O ataque simbólico mais agudo à nacionalidade teutônica veio das mãos de um grupo de pós-adolescentes, que subiram em um semáforo e puseram fogo numa camiseta da atual campeã mundial. "Hijos de p…", gritavam os incendiários.

Durante o jogo, muitos torcedores haviam subido em árvores para conseguir boa visão de um disputado telão na praça San Martín. Depois do jogo, eles escalaram semáforos, andaimes de construção e placas de trânsito, só pela diversão da coisa. Mas quando resolveram subir nos carros das redes de televisão que faziam a cobertura dos festejos, a diversão virou ameaça.

A polícia interveio, os torcedores reagiram. Houve troca de agressões, paus, pedras, balas de borracha, gás lacrimogênio, quebra-quebra, saques, provocações. "Somos todos argentinos, c...", gritou um rapaz tentando apartar uma briga que começara do nada, sem razão aparente.

Vândalos aproveitaram uma brecha dada pela polícia para arrombar portas de lojas e roubar tudo que puderam e até o que não queriam, como uma garota que encheu os braços de livros repetidos e depois reclamou de não ter onde colocá-los em casa. O voo das garrafas era uma ameaça a mais. Era difícil saber de que lado elas vinham, mas elas poderiam fazer um estrago razoável se acertassem a cabeça de alguém.

Alguns comerciantes reagiram à violência simplesmente baixando as portas. Outros, nem isso. "É normal, sempre acontece. Bebem e ficam assim", disse o dono de uma banca de revista que ficava no caminho da destruição causada pelos vândalos. A gerente da lanchonete deu de ombros. "Todo dia de futebol é assim."

"A pergunta que fica é por quê?", disse o apresentador do canal Todo Notícia, que deu destaque para o noticiário dos distúrbios durante toda a noite. "Essas imagens estão correndo o mundo e agora no Brasil estão todos achando que os argentinos são mau perdedores."

Entendendo o jogo

Jorge, um senhor de 54 anos, ficou os 120 minutos da final segurando uma bandeira da Argentina, vestindo um chapéu de bobo da corte azul e branco, em pé, embaixo de um edifício em obras, sem conseguir ver nem sequer o placar do jogo mais importante da seleção em 24 anos.

A praça estava lotada, e havia apenas um telão para dezenas de milhares de pessoas. Os jovens e fortes conseguiram a empurrões um lugar com visão para o jogo. Jorge ficou rodeando a praça, procurando um lugar, mas acabou sendo expelido para uma área atrás do telão, uma simples estrutura de metal. Instalou-se ali.

Perguntava o tempo a um rapaz que ouvia a partida pelo rádio. Interpretava a reação da torcida para entender o que acontecia no Maracanã. Parecia muito concentrado, como se reconstruísse cada jogada mentalmente. "Como assim 'não dá para ver o jogo'?", reagiu ele quando foi abordado pela reportagem, apontando à multidão. "Eles também são o jogo."

A torcida era o jogo. Talvez a parte mais importante dele. "É claro que seria melhor ver o campo, mas estar aqui, viver isso, é melhor do que ficar em casa sentado na frente da TV."

Para os argentinos, qualquer coisa parece ser melhor do que ficar em casa. É por isso que eles continuaram rodeando o Obelisco, chafurdando na lama que tomava as calçadas, sob um frio pouco amistoso, horas depois de perderem a final da Copa do Mundo.

É por isso que as cornetas continuaram soando e os fogos de artifício, cortando o céu; assim como os tiros da polícia, as garrafas de vidro, as bombas de gás lacrimogênio. "Nós somos o povo, nós somos o carnaval", lia-se em uma pixação perto do Obelisco, o contexto perdido no tempo.

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