Acampamento do MST faz "gambiarra" para ter energia e ver a Copa pela TV
Rodrigo Bertolotto
Do UOL, em Moreno (PE)
As paredes são de folhas de madeirite, o teto é de lona e a estrutura usa galhos das árvores arrancadas da mata que cobria o morro antes da ocupação. O que diferencia esse casebre dos outros da área é uma TV de tubo que emite os gritos de Galvão Bueno e compete com o ruído do vento forte no descampado.
Essa ocupação dos sem-terras de Moreno (Pernambuco) tem só duas ligações com o mundo exterior: uma trilha de barro e um emaranhado de fios conectados clandestinamente ao poste da rua de baixo. Graças a eles, os acampados do MST conseguem acompanhar o Brasil na Copa do Mundo em quatro TVs espalhadas pela área.
"É gambiarra mesmo. Aqui a gente chama também de 'gato' ou de 'macaco'. Não está certo puxar energia assim, mas foi a única forma de poder ver nossa seleção", afirma Ailton Silva, desempregado que luta um lote na cidade que é uma transição entre o subúrbio e a área rural dentro da Grande Recife.
Em meio a outros 15 ocupantes, Melo finca uma cadeira na meio da terra, toma um gole de conhaque de alcatrão e tenta decifrar as imagens da televisão com sinal muito ruim. O peão Adriano Barros corre para mexer nos fios, mas a conexão está cheia de chuviscos e fantasmas que multiplicam a quantidade de comandados de Felipão na tela.
"Mesmo no meio de tanta adversidade, a gente ama esse país. Eu fico arrepiada quando toca o hino. A gente até esquece que é o mesmo país que nega tanta coisa para seu povo", desabafa Sebastiana Gomes, coordenadora do MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra) no acampamento batizado como "Meu Pedacinho de Chão", copiando o título da novela que atualmente passa na TV Globo.
A cidade de Moreno é o principal foco do MST em Pernambuco, com 4.000 pessoas em dez ocupações espalhadas por nove dos 17 distritos do município. Os moradores antigos se queixam que houve derrubada de florestas de eucalipto nessas invasões. Por seu lado, a polícia florestal teme que também sejam atingidas áreas de Mata Atlântica remanescente. Já os ocupantes afirmam que só tiraram vegetação rasteira para entrar.
Apesar dos sonhos dos ocupantes, várias invasões já receberam a informação que a reintegração de posse foi decidida pela Justiça. "Acho que estão esperando a Copa acabar, a imprensa internacional ir embora, para a polícia entrar com tudo aqui. A nossa esperança é que as eleições estão chegando, e vai ficar feio fazer isso com a gente", argumenta Sebastiana. O ex-governador de Pernambuco, Eduardo Campos, é candidato à presidência e disputa com Dilma Rousseff as simpatias dos movimentos sociais e do próprio MST, o que complica ainda mais o cenário.
No Brasil, o furto de energia é crime, com penas que vão de multa a detenção, mas raramente isso acontece em um país já habituado com o descaso público tanto em fornecer energia quanto em punir quem faz uso indevido dela. E a gambiarra se tornou a versão elétrica do tal "jeitinho brasileiro".
Sebastiana fincou seu casebre no alto do morro do "Meu Pedacinho de Chão". De lá se vê outra colina, mas esta está coberta com fileiras simétricas de casas novas e coloridas. "Quem fez aquilo foi o Rivaldo. Imagina se todo jogador da seleção ajudasse os pobres como ele. Mas a maioria só quer gastar com mulheres e carrões", analisa a sem-terra.
A gambiarra do MST para ver a Copa é o capítulo mais recente de uma história tão antiga quanto a do Brasil. A luta pela terra no Nordeste é cheia de quilombos, jagunços, fanáticos religiosos como Antônio Conselheiro (e seu arraial de Canudos), cangaceiros lutando contra coronéis, flagelados da seca, surtos messiânicos como o de Padre Cícero e ligas camponesas massacradas por capangas.
A terra prometida e nunca entregue gerou delírios coletivos, romances regionais e levas de retirantes nordestinos ao longo dos séculos. Atualmente, mais da metade das 100 mil famílias acampadas do MST pelo país estão no Nordeste. A organização explica que não há orientação nem proibição para que os acampados façam ligações ilegais de energia elétrica. A decisão fica a cargo de cada acampamento.
Sem terra, mas com TV
A ascensão dos pobres com as políticas assistencialistas dos três governos petistas povoou com novos elementos o cenário rural. A pobreza ficou aparelhada, e a tecnologia mascara outras misérias. O objeto mais simbólico são as lavadoras de roupa em recantos onde as pessoas só sabiam lavar suas vestimentas em açudes. Hoje, muitas felizes consumidoras do sertão ainda devem buscar água em cacimbas para a máquina de lavar funcionar, afinal, não há água encanada na maioria dos lugares.
Também é emblemática a presença de TVs no campo. Até hoje, cidades pequenas e distritos rurais do Nordeste têm aparelhos e antenas fincados em postes da praça local, como testemunhas da época em que políticos faziam essa benfeitoria para que os canais chegassem às populações dos rincões.
O hábito de assistir jogo ou novela nos bancos de alvenaria da praça pública ficou tão arraigado que muita gente, mesmo com a TV em casa, prefere nos dias atuais ver ao ar livre e na companhia dos vizinhos os desfechos novelísticos e futebolísticos.
Nos acampamentos dos sem-terras, não é diferente. "Chega a ter 20 pessoas rodeando uma TV de 14 polegadas. Para gente, que não tem nada, é como se fosse um telão gigante", compara Ailton Silva.
Antes do jogo entre Brasil e Colômbia começar, os meninos do acampamento batiam uma pelada no campinho no alto do morro. "Faz o gol, miséria" e "Não erra não, desgraça" eram as instruções do goleiro para seu time. A situação que eles vivem se revela a cada detalhe. Até nos xingamentos. Pouco depois, os moleques abandonavam o jogo pela metade para ver a seleção brasileira em campo.