Argélia inverte pacto colonial e usa franceses para fortificar sua seleção

Do UOL, em São Paulo

Dois meses antes da Copa do Mundo de 1958, dois jogadores abandonaram a seleção francesa que embarcaria à Suécia naquele verão, cruzaram a fronteira com a Itália e chegaram ao norte da África para fundar a seleção nacional da Argélia.

Naquela época, o território ainda era colônia da França, e Mustapha Zitouni e Rachid Mekloufi, além de outros jogadores oriundos da África e baseados na Europa, excursionaram pelo mundo com a seleção argelina, que nasceu antes mesmo do país. Eles foram fundamentais na luta pela independência, alcançada quatro anos depois.

Em 2014, a seleção argelina que veio ao Brasil e jogará contra a Rússia nesta quinta, na Arena da Baixada, ainda mantém seus laços com o futebol francês. Uma vitória os classificará para as oitavas de final, mas eles podem avançar mesmo com um empate, desde que a Coreia não goleie a Bélgica na outra partida do grupo. O Placar do UOL Esporte transmitirá os jogos em tempo real a partir da 17h (de Brasília).

Nada menos do que dois terços dos argelinos convocados nasceram na França, e metade deles chegaram a ser convocados para as seleções de base francesas. Mas optaram por atuar no time africano por terem ascendência no país.

É o caso, por exemplo, do melhor jogador da equipe, o atacante Sofiane Feghouli, nascido em Paris. Ele chegou a jogar na base da seleção francesa, mas três anos atrás estreou na categoria principal da Argélia. Ou do lateral Faouzi Ghoulam, que jogou no time sub-21 da França, mas no fim optou por defender o país de seus pais.

As motivações desses atletas para virarem as costas ao lugar em que nasceram parecem ser muito menos políticas do que as de Zitouni e Mekloufi.

No interior dessa geopolítica esportiva, vale a seguinte regra: se você tem ascendência argelina e é muito bom, vestirá a camiseta azul da França, casos do artilheiro Karim Benzema e de Samri Nasri, que acabou não sendo convocado para a Copa (e, é claro, de Zinedine Zidane, o maior jogador francês de todos os tempos, filho de argelinos).

Mas se você tem ascendência argelina e é apenas bom, vestirá o verde das Raposas do Deserto. Muitos desses jogadores, cuja formação esportiva foi toda feita na França, escolhem defender a Argélia para ter a chance de jogar uma Copa do Mundo.

No caso do talentoso volante Saphir Taider, de 22 anos, recentemente contratado pela Inter de Milão, trata-se de uma questão emocional. Nascido na pequena cidade de Castres, na França, ele passou por todo o processo de formação de um genuíno jogador francês, atuou nas seleções de base, mas decidiu jogar na Argélia, terra de sua mãe.

"Eu agradeço tudo o que a França fez por mim, mas meu coração pertence a dois países, Tunísia [onde seu pai nasceu] e Argélia", disse em uma entrevista no ano passado. Ele foi abordado pelas duas seleções e escolheu vestir verde.

Guerra e oportunidades

Para entender como começou o recrutamento argelino de jovens franceses, é necessário voltar aos anos sangrentos da década de 1990, época de uma guerra civil que destruiu tudo no país, inclusive o futebol.

A seleção continuou jogando durante a guerra, mas a carnificina dos combates acabou com mais de 100 mil vidas, e entre elas, uma geração inteira de potenciais jogadores de futebol. Em 1998, o sucesso de uma seleção francesa liderada por um filho de argelinos acendeu uma luz na federação do país africano. Por que não usar as categorias de base da França como incubadora para a nossa seleção, eles se perguntaram.

E então se engajaram em uma campanha internacional para flexibilizar as regras da Fifa sobre a naturalização de jogadores e tiveram sucesso em 2004 quando Antar Yahia se tornou o primeiro atleta a se naturalizar pela nova regra. Mesmo tendo atuado na base da seleção francesa, ele optou por vestir a camiseta verde da Argélia.

Com a porteira aberta, os argelinos começaram a colher bons resultados em campo, frutos dos naturalizados. Eles então se juntaram a outras federações menores em um lobby para flexibilizar ainda mais essa regra, de maneira que, em 2010, a Fifa decidiu que um jogador poderia mudar de nacionalidade desde que não tivesse atuado profissionalmente por outra seleção.

Xenofobia

É claro que essa tendência não agrada a todo mundo, e a federação francesa se viu alvo de muitas críticas ao propor recentemente uma limitação no uso de jogadores de origem árabe e negra em suas categorias de base, com o argumento de que o dinheiro do país estava sendo usado para formar jogadores para outras seleções.

A proposta foi logo considera xenófoba e racista, e abandonada.

Mas não para sempre, haja vista a recente ascensão da Frente Nacional, um partido de ultradireita que se mostra descontente com a proeminência de árabes e negros no futebol nacional.

O historiador Laurent Dubois, especializado na imbricação entre futebol e nacionalismos, acredita que essa aversão sofrida por imigrantes (especialmente os de origem árabe) pode tender a forçá-los a se virar para as seleções dos países de seus pais.

"Talvez isso tenha influenciado a escolha de uma nova geração de jogadores, criando uma espécie de profecia que cumpre a si mesma", afirmou ele em um artigo recente. "Se jogadores com background de imigrantes na França não se sentem bem recebidos, eles podem olhar com mais carinho para a terra de seus pais quando chegar a hora de decidir onde vão fazer sua carreira."

Se for assim, não apenas a seleção da Argélia, como a de vários outros países que já foram colônias, ainda terão muitos frutos a colher nos campos de futebol.

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