Não mostre, não conte: em vez disso interrogue, indague, pondere, reflita

Entre os clássicos conselhos para uma boa escrita, para a composição de uma história cativante e única, consta uma palavra de ordem bastante peculiar, incompreensível na primeira vez que a ouvimos: mostre, não conte. Vem do inglês, como de costume, de uma cultura em que o "show, don't tell" se...

Onde se encontra a beleza? Um cronista a procura com toda pressa

Esta noite haverá uma festa. Amanhã, neste amanhã em que o severo leitor me espreita ainda com seu cenho franzido, neste amanhã faço aniversário. Acabo de passar algumas horas à procura de uma beleza qualquer que desfranza o cenho desse sujeito, uma beleza que seja em si o convite à festa, à...

Operação massacre: esse é o único nome possível para tal dizimação

Penso no menino franzino que se escondeu debaixo do sofá, enquanto rajadas intermináveis de tiros assolavam sua comunidade. A mãe ao lado, ajoelhada junto à porta, oscilando entre rezar e chorar, repetindo o nome do outro filho que ainda não voltara para casa. À noite, sozinho, esperando a mãe que...

A idade do infinito: sobre uma menina e seu desejo de ter uma filha

Penélope se aproximou com olhos estreitos, inquisitivos. Queria saber se era verdade, se era mesmo verdade a história quase impossível que a mãe lhe contara outro dia. Se uma parte ínfima dela própria, Penélope, uma parte chamada óvulo, existia dentro da mãe desde que a mãe tinha a idade dela, e...

Elogio da incompreensão em literatura e arte -- e do Nobel a Krasznahorkai

Quanto tempo levaria o leitor para abandonar este texto se o sentido lhe parecesse esquivo, indeterminado? Se a segunda frase já turvasse a proposta da primeira, lançando uma palavra fora de hora, obscuridade, uma palavra improvável, obnubilação, alguma metáfora insensata como um espelho na...

Sobre a explosão de uma estrela e o colapso iminente do mundo

Há sobre as nossas cabeças uma estrela prestes a explodir, um mundo inteiro a ponto de colapsar, de passar de tudo a nada, de imensidão misteriosa a caos desfeito. Há muitas estrelas prestes a explodir, decerto, mas dessa sabemos com precisão maior porque é das mais brilhantes do nosso céu, a...

Para que serve a psicanálise? Sobre a busca por um sentido inacessível

Por que alguém se encerra numa sala com um desconhecido, deita-se e extravia o olhar no vazio, põe-se a contar seus conflitos íntimos, suas memórias de infância, seus sonhos estranhos, as minúcias de sua vida? O que ganha com essa exploração verbal de si que poderia se estender até o fim de seus...

A morte e sua cadeia infinita de desamparos

A morte produz uma cadeia infinita de desamparos. Vai se perdendo o domínio sobre a própria voz, os próprios olhos, os próprios órgãos, a própria imagem, sobre a ideia que alguém faz de nós. Nisso ao menos há uma vantagem: a morte não termina nunca. O amigo de um amigo entrou num bar. Eu não estava...

A vida é fugaz e esvoaçante: uma lição das borboletas

O mundo não nos dispõe sentidos, oferece nada mais que presenças, movimentos. Quem escreve se depara continuamente com essa evidência: as coisas do mundo apenas existem, anteriores às palavras e aos significados que lhes damos. E, no entanto, tais coisas às vezes se tornam imagens perfeitas do que...

Do choro ao riso possível: história dos afetos suscitados por Bolsonaro

São dias históricos, há algo de grandioso em curso, mas não me vejo tão alegre assim, não me percebo mais propenso ao riso. É claro que uma piada bem formulada, uma charge sagaz, um meme preciso, tudo alcança sua graça, mas a entrega ainda não é total, não me desarmo como o bom riso exige. Talvez...

O legado de Verissimo, o mais querido escritor brasileiro

"Embora vigies, a morte conspira nas entrelinhas", é o que diz a epígrafe de Alcides Buss no primeiro romance de Luis Fernando Verissimo. Semana passada a morte concluiu com sucesso sua conspiração de décadas, levando consigo o nosso autor mais querido. Não o levou de surpresa, porém, e não nos...

O personagem mais lamentável de Lygia Fagundes Telles

Hoje quero falar sobre um sujeito esquivo, circunspeto, incompreendido. Um sujeito que, apesar de toda a distância, toda a diferença, parece me encarnar de alguma maneira, parece dizer coisas inesperadas sobre a minha vida. Alguém que acabo de descobrir e que, no entanto, me habita despercebido há...

Não existem finais felizes: a felicidade é uma ilusão que não desejamos

Convidaram-me a falar sobre a mentira dos finais felizes. Tarefa fácil: são mesmo mentirosos os finais felizes. Basta lançar ao mundo algum olhar clínico. Nossa cultura já aprendeu que nem tudo se dissolve em harmonia, que jamais se cria uma paz absoluta, carente de todo trauma passado e todo...

O persistente mistério do humor, vendo Chaves com novos olhos

Misteriosa coisa é o humor. Podemos rir profusamente de uma pequena estupidez, de um ato ridículo qualquer, e no entanto abrir um módico sorriso diante da ironia mais inteligente. Não há juízo nisso, não é uma declaração de preferência. A segunda, a frase sagaz que tudo ilumina, pode perdurar em...

Algo ainda não vimos em Hiroshima, oitenta anos depois do horror

Você não viu nada em Hiroshima, nada. É o que diz o homem de Hiroshima à sua amante francesa, enquanto ela o abraça, acaricia sua pele que queima, agora áspera feito areia. Eu vi tudo, tudo, ela discorda. Eu vi o hospital, tenho certeza. Como poderia evitar de vê-lo? Mas ele retruca, seco, você não...

Já somos a lembrança que um dia seremos

Vi que estreitava os olhos, entreabria a boca, franzia a testa, todo seu rosto se movia numa inconfundível expressão de surpresa. Penélope ensinou-se a ler há pouco tempo, e tendo desvendado sozinha o segredo das letras dedica agora boa parte da vida a desvendar os segredos do mundo. Mas aquilo não...

Por que ler livros? Para adiar o fim do pensamento, o fim da vida

Ler um livro com um simples toque dos dedos, ou ingeri-lo num comprimido, inseri-lo na pele com uma agulha: como quer que seja, num ínfimo lapso conhecer tudo o que ali está escrito. Eis um sonho antigo na história da humanidade, a possibilidade de adquirir um saber súbito, de assimilar sem nenhum...

Com aposta na desilusão, bets se tornam a perdição de um país

Terror e fascínio. É o que exercem desde sempre os jogos de azar, terror e fascínio indissociáveis até o limite. A esta altura já conhecemos seu legado tão difundido de perdição, prejuízo, ruína, e parece estranho ter de insistir nisso. Mas o caso é que subitamente, estranhamente, o país parece ter...

Em defesa do devaneio, abafado pelo discurso incessante do mundo

Da mente dos outros se sabe pouco, não há lá maneira segura de descobrir o que pensa o outro em sua solidão, no mais extremo isolamento. Só o que se pode fazer é especular a respeito, deduzir a partir de alguns indícios, aventar hipóteses sempre um tanto inconsistentes — é o que fazem a literatura,...

Precisamos falar sobre os búfalos

A condição de literato arruína minha autoridade, não sou nenhum especialista em criaturas selvagens, mas o caso é que olhei nos olhos dos búfalos e vi. Não há neles nenhum sinal da apatia bovina, da indiferença com que vacas e bois ruminam a cada dia seu monótono destino. O que os búfalos mastigam...