O melhor é não ter importância e estar vivo

Quem o disse foi Carlos Drummond de Andrade, no ocaso de sua vida, quando sua importância para a cultura brasileira já era inquestionável: "O melhor é não ter importância e estar vivo". Foi o mais perfeito comentário que podia fazer sobre o desejo de fama que tomava os seus dias e ainda toma os...

O sorriso desaparecido de Rubem Braga

Desconfiado de sua palavra, senti uma súbita urgência de ver o rosto do jovem Braga. Queria saber se ele mentia numa crônica, se mentia quanto à existência de uma tal Pierina, uma vizinha com quem ele travou na juventude um amor através das janelas, por sinais e gestos, e a quem lançou um avião de...

Viagem ao interior de mim mesmo, única forma verdadeira de turismo

Passeio por uma cidade antiga, quase tão velha no tempo quanto na minha própria estima. Vivi nela por um ano há mais de uma década, suas esquinas agora me resultam estranhas e íntimas. Caminho a passo lento, levo debaixo do braço um vinho que vou bebericando discretamente, deixo que as pernas...

Sebastião Salgado: o homem que avistou a imensidão do mundo

Pode estar no horizonte, um vasto céu branco sobre o chão seco, e o menino nu com seu cão esquelético que dá as costas para nós e o contempla. Pode estar na cadeia de montanhas que ao infinito se estende, entre elas um riozinho que serpenteia, paisagem entrevista em meio à névoa. Pode estar também...

Um grandioso homem simples: suplício e triunfo de José Pepe Mujica

A história desse homem começa com seu suplício. Começa nos tantos anos que passou preso num calabouço escuro, às vezes dias inteiros sem comer, sem tomar água, sem ouvir a voz de ninguém, sem que lhe garantissem o mínimo essencial, um livro, um banheiro. Em luta desde o princípio para que houvesse...

Deus não existe, por isso precisamos tanto de pessoas boas

Era uma tarde límpida, de um céu azul imaculado. Eu flutuava num barquinho pelas águas de um mar calmo, movido apenas pela força do vento, no leme a minha mão firme. Reparei que não havia ninguém ao meu redor, que nem o mais remoto corpo os meus olhos alcançavam. Eu estava sozinho como nunca...

O fim da imortalidade -- notas sobre uma ideia que aos poucos nos abandona

Com algum sentimento de nostalgia, não sei bem por que, me pego a ler textos sobre a imortalidade. Percebo que essa ideia vai se fazendo, dia após dia, mais estranha e antiquada. Pouco a pouco desaparece do mundo a esperança de não desaparecermos, de encontrarmos algum jeito de perdurar, no corpo...

Para que servem as histórias infantis?

Entre as ásperas exigências da paternidade, há aquelas que se convertem nos mais suaves prazeres. Pôr as filhas para dormir lendo um, dois, três livros, sentindo a mão de uma sobre meu peito, a voz da outra arriscando suas próprias sílabas sobre meu ombro, tem sido entre tais prazeres o mais...

Carta a uma jovem escritora: observações a partir do clássico de Rilke

Uma jovem me procura com uma questão urgente que a consome, envia o primeiro conto que escreveu em sua vida, pergunta se tem algum valor, se ela deve continuar se dedicando à escrita. Súbito me vejo em posição bem conhecida por escritores de qualquer tempo, abandono a condição de autor e o trato...

O triste Brasil que o Brasil precisa conhecer: o caso Pau D'Arco

O Brasil não conhece o Brasil. Isso já muito se disse, já ficou gravado em nosso imaginário no timbre de Elis Regina, dando ao primeiro Brazil um z que nos afasta, nos faz estrangeiros em nosso próprio país. Mas não tenho tanta certeza. Acho que o Brasil chega muitas vezes a se conhecer, depara-se...

Os assustadores cinco anos: observações a partir do grito de uma criança

Muito já se falou sobre os terríveis dois, em geral apelando à autoridade do termo anglófono, os terrible two. Também já ouvi algumas menções aos espantosos três, um pouco mais escassos em estridências que o ano anterior. Dos apavorantes quatro escapamos quase incólumes em casa, confiantes de que o...

Ver para escrever: a cidade em movimento revela sua riqueza

Em vez de escrever sobre o que já sabe, escreva sobre o que vê. Leio essa frase num livro de Sigrid Nunez, conselho que ela recebeu de um amigo para que a escrita não se faça doutrinária e comum. Leio essa frase e sinto uma vontade repentina de fazer o que ela faz, o que ela narra em seguida, de...

O fim de quase toda memória: então é assim que as histórias acabam

Foi há um tempo incerto, um senhor se aproximou num museu, queria me dizer algumas palavras. Pensei que viesse me repreender pela alegria ruidosa das minhas filhas ao redor, mas seu semblante era amigável. Não queria mais que me contar uma história. Sabia que eu me chamava Fuks, assim grafado com...

Palavras demais -- um discurso contra o excesso verbal dos nossos dias

Dos muitos modos de nomear o excesso que marca os nossos dias, a insensata exorbitância de tudo, talvez um dos mais razoáveis seja afirmar que vivemos entre palavras demais. Palavras que nos cercam por todos os lados, palavras que também proferimos com fartura: nenhum de nós quer fazer do silêncio...

Como escrever bons diálogos -- ou como fugir deles com máxima elegância

Em literatura, nada é mais difícil do que atribuir palavras a seres inexistentes, inventar discussões nunca travadas em parte alguma. Tão duro é o desafio, e tão comum o desacerto, que muitos grandes autores preferem fugir dele, narrar pessoas caladas em isolamento, limitar-se aos atos silenciosos...

Receita para uma crônica de Carnaval

Uma crônica de Carnaval deve começar sóbria, taciturna, fleumática, como quem toma as ruas de manhã ainda sem ímpeto de se embriagar. Pode professar até alguma antipatia pela perdição que se anuncia, alguma impaciência com a euforia de toda a gente, com a iminente explosão do vozerio, da histeria,...

A urgência de acabar com o abismo entre meninos e meninas

Fez a leitura cuidadosa do espaço, aspirou um litro de ar, escolheu a mesa onde uma menina loira comia sozinha, os cabelos cacheados cobrindo parte de sua cara. Eram ambas novas naquele lugar, ela imaginou que seria o momento exato para inaugurar um diálogo, quem sabe uma amizade. Sentou-se bem na...

Pode um artista tomar o país, a voz, o corpo do outro? O caso Emilia Pérez

Pode um artista criar uma obra sobre qualquer assunto do mundo que o cative e o comova? Pode tomar posse artística de uma vida distante da sua, de um país distante do seu, de uma língua cujas nuances lhe são indiscerníveis? Pode fazer de uma tragédia desconhecida para si o cerne do que tem a dizer,...

O prazer e o desespero da procura: uma crônica contra a angústia

Houve um tempo em que acordava angustiado nas sextas-feiras. Os olhos ainda turvos, as costas rendidas à cama, vinha de súbito a consciência de estar em falta. Era sexta e eu ainda carecia de uma ideia justa, digna, válida, uma que merecesse ser alinhavada em palavras. Em poucas horas a editora...

Sobre o ódio aos deslocados do mundo, insensatez maior dos nossos dias

De todos os fartos delírios que o mundo tem nos oferecido, nenhum é mais delirante que o desprezo que tantos têm sentido pelos imigrantes. A ideia do forasteiro como um adversário, um usurpador, um inimigo, um invasor indesejável a ser vetado, barrado, banido.