São dias históricos, há algo de grandioso em curso, mas não me vejo tão alegre assim, não me percebo mais propenso ao riso. É claro que uma piada bem formulada, uma charge sagaz, um meme preciso, tudo alcança sua graça, mas a entrega ainda não é total, não me desarmo como o bom riso exige. Talvez...
"Embora vigies, a morte conspira nas entrelinhas", é o que diz a epígrafe de Alcides Buss no primeiro romance de Luis Fernando Verissimo. Semana passada a morte concluiu com sucesso sua conspiração de décadas, levando consigo o nosso autor mais querido. Não o levou de surpresa, porém, e não nos...
Hoje quero falar sobre um sujeito esquivo, circunspeto, incompreendido. Um sujeito que, apesar de toda a distância, toda a diferença, parece me encarnar de alguma maneira, parece dizer coisas inesperadas sobre a minha vida. Alguém que acabo de descobrir e que, no entanto, me habita despercebido há...
Convidaram-me a falar sobre a mentira dos finais felizes. Tarefa fácil: são mesmo mentirosos os finais felizes. Basta lançar ao mundo algum olhar clínico. Nossa cultura já aprendeu que nem tudo se dissolve em harmonia, que jamais se cria uma paz absoluta, carente de todo trauma passado e todo...
Misteriosa coisa é o humor. Podemos rir profusamente de uma pequena estupidez, de um ato ridículo qualquer, e no entanto abrir um módico sorriso diante da ironia mais inteligente. Não há juízo nisso, não é uma declaração de preferência. A segunda, a frase sagaz que tudo ilumina, pode perdurar em...
Você não viu nada em Hiroshima, nada. É o que diz o homem de Hiroshima à sua amante francesa, enquanto ela o abraça, acaricia sua pele que queima, agora áspera feito areia. Eu vi tudo, tudo, ela discorda. Eu vi o hospital, tenho certeza. Como poderia evitar de vê-lo? Mas ele retruca, seco, você não...
Vi que estreitava os olhos, entreabria a boca, franzia a testa, todo seu rosto se movia numa inconfundível expressão de surpresa. Penélope ensinou-se a ler há pouco tempo, e tendo desvendado sozinha o segredo das letras dedica agora boa parte da vida a desvendar os segredos do mundo. Mas aquilo não...
Ler um livro com um simples toque dos dedos, ou ingeri-lo num comprimido, inseri-lo na pele com uma agulha: como quer que seja, num ínfimo lapso conhecer tudo o que ali está escrito. Eis um sonho antigo na história da humanidade, a possibilidade de adquirir um saber súbito, de assimilar sem nenhum...
Terror e fascínio. É o que exercem desde sempre os jogos de azar, terror e fascínio indissociáveis até o limite. A esta altura já conhecemos seu legado tão difundido de perdição, prejuízo, ruína, e parece estranho ter de insistir nisso. Mas o caso é que subitamente, estranhamente, o país parece ter...
Da mente dos outros se sabe pouco, não há lá maneira segura de descobrir o que pensa o outro em sua solidão, no mais extremo isolamento. Só o que se pode fazer é especular a respeito, deduzir a partir de alguns indícios, aventar hipóteses sempre um tanto inconsistentes — é o que fazem a literatura,...
A condição de literato arruína minha autoridade, não sou nenhum especialista em criaturas selvagens, mas o caso é que olhei nos olhos dos búfalos e vi. Não há neles nenhum sinal da apatia bovina, da indiferença com que vacas e bois ruminam a cada dia seu monótono destino. O que os búfalos mastigam...
Horas, dias, semanas passa o escritor trancado em palavras, obcecado com a construção da frase precisa, a frase que enfim diga aquilo que a vida cala. Nenhuma criação o satisfaz, o sentido é esquivo, o som vacila, nenhuma ideia se deixa capturar por letras enfileiradas. O escritor não quer mais...
Quem o disse foi Carlos Drummond de Andrade, no ocaso de sua vida, quando sua importância para a cultura brasileira já era inquestionável: "O melhor é não ter importância e estar vivo". Foi o mais perfeito comentário que podia fazer sobre o desejo de fama que tomava os seus dias e ainda toma os...
Desconfiado de sua palavra, senti uma súbita urgência de ver o rosto do jovem Braga. Queria saber se ele mentia numa crônica, se mentia quanto à existência de uma tal Pierina, uma vizinha com quem ele travou na juventude um amor através das janelas, por sinais e gestos, e a quem lançou um avião de...
Passeio por uma cidade antiga, quase tão velha no tempo quanto na minha própria estima. Vivi nela por um ano há mais de uma década, suas esquinas agora me resultam estranhas e íntimas. Caminho a passo lento, levo debaixo do braço um vinho que vou bebericando discretamente, deixo que as pernas...
Pode estar no horizonte, um vasto céu branco sobre o chão seco, e o menino nu com seu cão esquelético que dá as costas para nós e o contempla. Pode estar na cadeia de montanhas que ao infinito se estende, entre elas um riozinho que serpenteia, paisagem entrevista em meio à névoa. Pode estar também...
A história desse homem começa com seu suplício. Começa nos tantos anos que passou preso num calabouço escuro, às vezes dias inteiros sem comer, sem tomar água, sem ouvir a voz de ninguém, sem que lhe garantissem o mínimo essencial, um livro, um banheiro. Em luta desde o princípio para que houvesse...
Era uma tarde límpida, de um céu azul imaculado. Eu flutuava num barquinho pelas águas de um mar calmo, movido apenas pela força do vento, no leme a minha mão firme. Reparei que não havia ninguém ao meu redor, que nem o mais remoto corpo os meus olhos alcançavam. Eu estava sozinho como nunca...
Com algum sentimento de nostalgia, não sei bem por que, me pego a ler textos sobre a imortalidade. Percebo que essa ideia vai se fazendo, dia após dia, mais estranha e antiquada. Pouco a pouco desaparece do mundo a esperança de não desaparecermos, de encontrarmos algum jeito de perdurar, no corpo...
Entre as ásperas exigências da paternidade, há aquelas que se convertem nos mais suaves prazeres. Pôr as filhas para dormir lendo um, dois, três livros, sentindo a mão de uma sobre meu peito, a voz da outra arriscando suas próprias sílabas sobre meu ombro, tem sido entre tais prazeres o mais...