Por que escrever? Sobre a busca por um frágil sentido para a existência

Em algum lugar oscilante entre a mais nítida evidência e o mais obscuro dos mistérios é que se encontra a razão por que escrevemos. Está ali o sujeito de expressão neutra, nem eufórico nem agônico, contemplativo apenas, debruçado sobre a página onde alinha suas palavras com ímpeto ou delicadeza....

Diálogo impossível entre um escritor e um engenheiro

O peso dos anos curvou o muro entre as casas. O peso dos anos somado ao de uma figueira em expansão indomável, que quis se debruçar sobre o muro e nele apoiar seus largos cotovelos. Tudo em absoluto silêncio, tudo num murmúrio vegetal que jamais ouviriam os humanos, até o instante em que a ligação...

Morte e vida das coisas vagas, das artes, das relações humanas

Tenho pensado muito na morte. Não na minha própria morte, assunto mesquinho que a ninguém interessaria, nem mesmo a mim, que, morto, nada teria com isso. Tenho pensado muito em outras mortes, na morte das coisas imateriais, na dissolução dos corpos incorpóreos. Na lenta dissipação que pode acometer...

O colo como esconderijo, abrigo contra as tristezas do mundo

Entre as tantas conveniências de um bebê, pouco se tem ressaltado seu papel de anteparo social para um pai por vezes tímido, ensimesmado. Fala-se com razão que um bebê aconchegado no colo pode ali encontrar seu lugar no mundo, sua casa, sua cama, seu esconderijo. Destaca-se menos o que ele oferece...

O último personagem simples: o homem convertido em sua caricatura

Ora um sujeito brutal, ignorante, empenhado na defesa violenta de seus privilégios. Ora alguém desnorteado, a oscilar entre a confusão e a paralisia, incapaz de lidar com as transformações de seu tempo. Eis o homem, eis a indubitável crise da masculinidade. Ninguém de mente sã negará que se trata...

Sobre a forma exata das palavras, onde talvez more sua beleza

Vivo em descompasso com meu tempo. Uma declaração como essa poderia se completar com todo tipo de contravenções e antinomias, mas hoje me refiro a uma coisa mesquinha, irrelevante, a uma dessas implicâncias bestas que tão bem nos definem. Tenho uma atenção obstinada à grafia das palavras, e sofro...

Para que serve a tristeza? Para que olhar e dar palavras à tragédia?

Mario Quintana está coberto de água até o peito. Talvez alguém lhe conte que a cidade onde nasceu foi devastada pela enchente, que a casa de sua infância ficou inteira submersa. Do banco em que está, é possível que veja o hotel onde morou tantos anos, o prédio que hoje o homenageia. Hoje não: hoje...

É possível aprender e transformar algo a partir de um caso de racismo?

Pode-se aprender algo com a dor, alheia ou própria? Uma violência pode ser o ponto de partida de uma reflexão, de uma transformação de pensamentos e ações? Não é raro que a literatura, pouco dada a mensagens edificantes, sugira que não, que o mal só produz sua espiral de infortúnios e agrava todas...

O fim da intimidade: sobre o risco de adotar para si os juízos dos outros

Ele não existe, não poderia existir, ou este texto perderia o sentido. É um sujeito qualquer, de idade indefinida, um sujeito bom, que no entanto percebe em si alguns desejos inadequados, ou que às vezes se vê acometido por sentimentos pouco dignos. Quais desejos e sentimentos não sei, o leitor que...

Memória ou invenção: de que são feitos os nossos sonhos?

De onde vêm os sonhos? O que são essas sombras e luzes que compõem em nossa mente estranhas imagens inexistentes, ora obscuras e turvas, ora de uma nitidez extraordinária? Sei que essas perguntas são velhas, que já alcançamos infinidade de respostas para elas, que a filosofia, a literatura, a...

Sobre o vasto mundo das crianças, e seu exemplo de leveza e liberdade

Chama-se Tartaruga, nome porventura irônico, dada sua velocidade impressionante. Na última segunda deu-se sua fundação: as três meninas se furtaram ao recreio costumeiro e se reuniram numa sala recôndita, deliberando a criação da editora. Tulipa seria a autora, Bárbara, a ilustradora, Iolanda, a...

Como terminar um livro? Coleção inacabada de boas frases finais

Concluir é tarefa de imbecis, sugeriu certa vez Flaubert numa declaração menos célebre do que outras suas. A insolência da frase talvez não lhe subtraia alguma verdade, a noção de que nada neste mundo merece conclusão, de que toda questão está destinada a permanecer aberta, incerta, irresoluta....

Sessenta anos do golpe: quando termina a escrita de um trauma?

"Quando termina a escrita de um trauma?", pergunta-se Maria Rita Kehl, interroga-se seguidas vezes variando as palavras. "Quantos anos, ou décadas, são necessários para que um fato traumático se incorpore à memória nacional sem machucar nem se banalizar?" Sim, estamos falando sobre a ditadura...

A literatura no cinema: a queda dos escritores e sua possível reascensão

Esqueça-se o sujeito altivo, imperturbável, senhor de seus pensamentos. Esqueça-se a figura confiante e solene, o sujeito que tudo sabe, tudo leu, tudo viu, tudo compreendeu. Esqueça-se a mente absoluta, capaz de assimilar as sutilezas da experiência humana e expressá-la em palavras decisivas,...

Ser o que não se é: uma evocação da infância, do sonho, da poesia

Um urso vê que os gansos estão voando para o sul, vê as folhas amareladas das árvores, e entra numa gruta para hibernar. Enquanto hiberna, chegam hordas de homens com tratores e tudo alteram ao seu redor, na construção de uma imensa fábrica. Quando o urso enfim desperta, vê que já não há floresta e...

Sobre os atos de censura à literatura, expressão da força que ela atinge

E então, subitamente, aquilo que se julgava tão irrelevante, indiferente aos rumos do mundo, alheio aos interesses maiores da população, aquilo que já não repercutia em parte alguma e já não tocava ninguém, aquele discurso inútil, pretensioso e narcisista que só agradava uma minoria, subitamente...

Genocídio: palavra necessária que se converte em grito de basta

"Toda palavra é como uma mácula desnecessária no silêncio e no nada". Assim escreveu Samuel Beckett, que travava intimidade máxima com os limites da linguagem, e fez de sua escrita um manifesto contundente sobre a incompreensão entre as pessoas. Toda palavra erra, toda palavra altera, deturpa,...

A inquietude imobiliária: sobre a cidade à venda e o desejo de se mudar

Pode ser uma impressão equivocada, pode ser uma atração exagerada do meu olhar. Mas sinto que em minha cidade nunca houve tantas casas à venda, tantos apartamentos desejosos de um novo proprietário, tantos terrenos baldios a exibir suas figueiras para seduzir algum comprador. Por toda parte vejo...

Parabará, bará, bará, parabarabará! Precaríssimo anedotário do Carnaval

O Carnaval pode ser uma diversão quimérica, a busca contínua por um estado que jamais se alcançará. Nessa busca é preciso aguentar o choque incessante entre os corpos, o tempo inclemente, a embriaguez em horário insólito, a música às vezes distante, às vezes duvidosa. E então acontece o momento...

A vida também pode ser alegre - recado ao impaciente com o Carnaval

Vejo você à janela, os braços cruzados, um ligeiríssimo menear da cabeça de um lado a outro, em prenúncio de lamento. Abaixo começa a passar o cortejo pela rua ainda ilesa, a rua que você gosta de pensar sua, a rua que você preza. Corpos vão aderindo lentamente ao movimento e você os observa, seus...