O técnico mais irritado da Copa atingiu feito inédito. E ninguém gosta dele

Guilherme Palenzuela e Marinho Saldanha

Do UOL, em Curitiba e em Porto Alegre

"Eu não jogo para jornalistas, não jogo para críticos. Não jogo para vocês. Se vocês quiserem criticar, podem criticar. Eu não vou me importar com isso. Me disseram que tenho 3 milhões de fãs no Facebook. Então veja, tem gente que me aprecia". Assim falou na última quarta-feira o bósnio Vahid Halilhodzic, 61, técnico que um dia depois levaria a seleção da Argélia às inéditas oitavas de final da Copa do Mundo, ao empatar por 1 a 1 com a Rússia, na Arena da Baixada, em Curitiba. A declaração foi feita no mesmo local, na entrevista coletiva oficial da Fifa, endereçada à imprensa argelina. O temperamento intempestivo do treinador desenvolveu a pior relação possível com os jornalistas, mesmo sendo responsável pelo melhor momento da história do futebol nacional.

Fosse argentino, o técnico certamente levaria a alcunha de "El Loco" entre Vahid e Halilhodzic. Mas é bósnio. Iugoslavo. A experiência pessoal em situações de conflito fez com que Halilhodzic tivesse que lidar com problemas muito maiores. Ex-jogador do Nantes e do Paris Saint-Germain, da França, ele estava aposentado havia cinco anos e iniciava a carreira de treinador pelo Velez Mostar - time que o revelou como atleta - quando foi ferido na Guerra da Bósnia, vivendo em território bósnio. À época, a Iugoslavia vivia processo de desintegração a partir da queda do comunismo. Levou meses para se recuperar e, quando conseguiu, deixou o país. Viu a casa em que morava ser saqueada e incendiada.

Foi neste momento que Halilhodzic voltou à França, país no qual viveu entre 1981 e 1987 como jogador. As declarações fortes sempre o acompanharam, mas se intensificaram na Argélia. Assumiu o cargo em julho e 2011, há três anos, e iniciou uma revolução. Não promoveu apenas uma renovação de gerações, mas também um corte a atletas que considerava fora do perfil da seleção. Foi o caso de um dos mais habilidosos do time, o meia Ryad Boudebouz - ex-Sochaux e atualmente no Bastia. Hoje com 24 anos, ele não fez parte as últimas convocações de Halilhodzic, que decidiu montar uma equipe para Sofiane Feghouli, seu camisa 10, atleta do Valencia, jogar. Funcionou. Mas os questionamentos da imprensa sobre a reformulação e as críticas sobre o estilo de jogo supostamente defensivo criaram a relação conflituosa, que só se intensificou com o passar do tempo.

Três anos após assumir a Argélia, Vahid Halilhodzic conseguiu o impensável. Não só foi à Copa do Mundo como colocou a equipe nas oitavas de final, desbancando a Rússia, favorita para passar de fase ao lado da Bélgica no Grupo H. Agora, a próxima etapa é o confronto contra a Alemanha. Em 1982, 1986 e 2010, nas outras três Copas em que a Argélia jogou, a eliminação sempre aconteceu na primeira fase. Mas a ira demonstrada na entrevista em Curitiba antes da partida se manteve mesmo com a conquista. Logo depois do jogo, bastou uma questão na coletiva para ele se irritar. Foi questionado sobre qual seria a conduta dos atletas durante o Ramadã, período sagrado da religião islâmica no qual os adeptos praticam jejum parcial, e não gostou. Disse que gostaria de falar sobre futebol. Quando ouviu a mesma pergunta pela segunda vez, quebrou o protocolo da Fifa e abandonou a entrevista oficial da Copa.

E se Halilhodzic não gosta da imprensa, a recíproca é totalmente verdadeira. Acusações não são feitas apenas em jornais, rádios ou redes de televisão, mas um simples bate-papo com jornalistas argelinos já revela um clima tenso. O treinador é acusado de proibir os atletas de jejuarem no Ramadã, de ter escalação influenciada pelo presidente da Federação e até de vetar entrevistas.

Ainda antes do ocorrido em Curitiba, Halilhodzic havia dito, em Porto Alegre, após a vitória sobre a Coreia do Sul que 'muitos jornalistas estariam tristes pela conquista de sua equipe'. Na mesma coletiva afirmou ter 'pena' dos repórteres presentes. Um dia antes ele não havia deixado conceder entrevistas, quebrando o protocolo da Fifa. Ao seu lado no contato formal com a imprensa apareceu o terceiro goleiro da equipe.

Nos jogos da Copa do Mundo, os atletas das duas equipes envolvidas passam por uma zona mista após as entrevistas coletivas oficiais, no espaço em que podem ser abordados por jornalistas do mundo inteiro, de diversas mídias. A mesma imprensa argelina que vive em guerra com o bósnio cultiva relação de torcedor com os atletas. O atacante Yacine Brahimi foi o primeiro a aparecer após se trocar, já de paletó, e provocou uma reação de arquibancada no meio da área de trabalho da imprensa depois do empate com a Rússia. Jornalistas argelinos - alguns vestiam a camisa da seleção - celebraram, gritaram e bateram palmas. Brahimi recebeu mais abraços do que perguntas da imprensa. A reação dos jornalistas foi semelhante para todos os jogadores, em especial para o meia Feghouli, dono da equipe. Quando o técnico bósnio passou, nenhum sorriso, nenhum cumprimento.

Neste domingo, véspera do principal jogo da história da Argélia em Copas do Mundo, o técnico até tentou romper a relação ruim no começo de sua entrevista. Brincou dizendo que gostaria de avançar às quartas para conhecer a praia de Copacabana, no Rio de Janeiro. Os risos que sucederam a colocação, porém, logo tiveram fim. Uma nova questão sobre o Ramadã surgiu, Halilhodzic voltou a atacar a conduta da imprensa, levantou o tom de voz beirando os gritos, mas pelo menos não deixou a sala de conferências e levou a entrevista até o fim. Não sem antes ampliar o repertório de ataques à mídia. Disse que tem 'nojo' da conduta dos jornalistas, que as colocações 'não tem ética nem respeito'.

Vahid Halilhodzic não tem lar. Perdeu a casa na Bósnia, durante a Guerra, em 1992. Saiu de lá ferido, experimentando o nascimento de diferentes sentimentos nacionalistas. Agora, leva a Argélia a um momento único, mas não entra na festa. No fim de julho, ele deixará o comando da seleção após três anos, vai assumir o Trabzonspor, da Turquia, e será substituído pelo francês Cristian Goucuff, algo que a imprensa argelina já faz questão de festejar. Mesmo durante a Copa do Mundo. E quanto aos 3 milhões de fãs no Facebook, não é verdade, como ele mesmo sabe. São apenas 5 mil.

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