Esqueça drogas e guerrilha: Copa causa invasão na fronteira Brasil-Colômbia

Rodrigo Bertolotto

Em Tabatinga (Amazonas) e Letícia (Colômbia)

Anos atrás quem passava para o lado brasileiro era Pablo Escobar, o senhor das drogas de Medellín. Depois quem ia para o lado colombiano era Fernandinho Beira-Mar. Nestes dias de Copa do Mundo, porém, os invasores na fronteira mais problemática do Brasil são apenas os torcedores. A cada vitória da seleção um pelotão verde-e-amarelo de veículos entra pelas ruas de Letícia (Colômbia). A cada triunfo de "La Tricolor" um comboio motorizado toma a avenida da Amizade, em Tabatinga (Amazonas).

Essas hordas festivas são um desfile da fauna fronteiriça. Há soldados de folga enchendo a cara, prostitutas colombianas rebolando nas caçambas de picapes, moto com cinco indígenas montados nela, mulas do tráfico tocando vuvuzelas, contrabandistas de gasolina jogando farinha nos outros foliões e triciclos indianos ostentando bandeiras dos dois países.

As polícias de Brasil e Colômbia organizam essa migração barulhenta, que começou espontânea e improvisada. Camburões do país visitado guiam os invasores em sua excursão pelo exterior, com agentes compatriotas dos torcedores na escolta para garantir que os forasteiros voltem sem distúrbios.

"Fechamos um acordo com as autoridades brasileiras antes da Copa. Estamos no meio da selva, e a população tem poucas opções de lazer. Nosso Carnaval é extravasar após as vitórias no futebol", explica o sargento Javier Rodríguez, da Polícia Nacional da Colômbia, sobre as duas cidades que só tem ligação com o resto do mundo por barco ou avião.

A caravana colombiana ultrapassa muros pichados com a frase "Rumo Ao Hexa" e chega à entrada do clube de oficiais do Exército brasileiro. Só freia na frente diante da placa "Cuidado: área residencial militar". A partir daí, os recrutas brasileiros param qualquer intruso. Os soldadinhos estão de sentinela. Nem o walkietalkie deles dá algum resultado da Copa, enquanto os oficiais seguem os jogos da seleção em um salão de janelas com insulfilme e ar condicionado no máximo.

Narcoguerrilha na fronteira

Tabatinga é uma cidade que surgiu no entorno de um quartel de fronteira e só se emancipou em 1983. Foram os próprios militares que abriram a trincheira no tapete verde da floresta que hoje é a avenida da Amizade, que liga as duas nações e serve de passarela para as torcidas.

O rio Solimões corre silencioso ao lado e separa essa urbe binacional de outro país: o Peru, representado nessa tríplice fronteira por Santa Rosa, um povoado de palafitas. Os peruanos parecem minimizados. Tem a cidade mais modesta da região e nem sua seleção está na Copa. Mas é de lá que vem o grande problema atualmente. A cocaína produzida por lá navega ao longo da fronteira, passa por Manaus e Guiana em rota para a Europa. Mesmo a forte presença militar na área não impede tanta exportação ilícita pelas águas barrentas.

Já passou o tempo em que o temido Cartel de Letícia e seus narcodólares encrustavam luxos na cidade lamacenta. Isso aconteceu até o final do século passado. O cartel foi desmontado com ajuda dos EUA, como todas outras quadrilhas colombianas da época. Hoje em dia, os bandos criminais estão atomizados. O principal risco está no limite mais ao norte da divisa entre Brasil e Colômbia, onde a miscigenação das guerrilhas Farcs com grupos traficantes fez surgir as narcoguerrilhas, combinando tráfico de drogas e de armas.

A mestiçagem na fronteira é total. Mistura-se ritmos, com os DJs locais revezando forró e cumbia nas boates. Mesclam-se as comidas: o ceviche peruano feito com pirarucu é acompanhado com patacón, uma massa de banana verde que é típica da Colômbia. Nos restaurantes de Tabatinga, o canal preferido é a TV Caracol. No porto de Letícia, os aparelhos estão sintonizados na TV Bandeirantes ao lado de uma parede com a imagem pintada de "Nuestra Señora Aparecida".

As nacionalidades também são mestiças. Uma brigada de motos colombianas festejou junto com os brasileiros após a goleada por 4 a 1 sobre Camarões e no meio de um dilúvio amazônico que não diluiu a excitação. No dia seguinte quando a Colômbia aplicou o placar no Japão, os brasileiros entraram de penetra nos tuc-tucs (riquixás motorizados importados da Índia) que davam a volta olímpica por Tabatinga.

Copa pode fechar fronteira

O problema agora é o encontro dos vizinhos na fase quartas de final, dia 4 de julho. O duelo deve fechar a fronteira para evitar confrontos. "Por enquanto, as duas equipes estão bem e não se enfrentaram. Mas o encontro da felicidade de um com a dor do outro pode provocar brigas. Acho melhor fechar a fronteira", decreta o comandante policial em Letícia, coronel Gildário Taborda. Nessa hipótese, é melhor não ferir os sentimentos e as soberanias nacionais.

"Eles vem aqui e fazem muita zueira, e a gente deixa. Não acho certo. Quando vamos lá a polícia quer logo nos enquadrar. A moto do meu amigo ficou apreendida na última comemoração", reclama o pedreiro Augusto Barbosa. O que mais o irrita é o que os colombianos chamam de "el carioca", uma serpentina em spray que atiram em quem fica só assistindo a ocupação estrangeira.

A crítica contrasta com a imagem do sargento Javier Rodríguez, da Policia Nacional da Colômbia, com o microfone na mão entrevistando cinco meninos sobre uma moto, todos sem capacete e de chinelo. No lugar de autuar os festeiros, o sargento estava gravando uma reportagem para um programa de TV produzido pela polícia.

"O que está acontecendo aqui é único. A alegria extravasa limites, afinal, Brasil e Colômbia estão jogando bem na Copa. Isso chama muita atenção no resto de nosso país", conta Rodríguez.

Bogotá vive sob lei seca nos dias de jogos, enquanto "mucho licor" evapora na calorenta Letícia. Outras cidades colombianas têm toque de recolher à noite para os menores de idade e circulação proibida de motos, para conter os tumultos nos festejos. Em Letícia, tudo é liberado.

As transversais de Tabatinga, despidas de asfalto e decoradas com grandes poças, o consumo é de "basuco", pasta de coca mesclada com maconha. A ilegalidade segue mais à frente. Na linha demarcatória há uma fileira de mulheres com garrafas pet cheias de gasolina. É o mercado negro que prospera todo final de mês, quando os postos de Letícia secam porque todos vão atrás do preço 50% mais barato que em Tabatinga.

No meio da noite o buzinaço que começou de tarde silencia. Barulho mesmo só vem da salsoteca de Letícia reunindo os torcedores que ainda rodopiam suas euforias em ritmo caribenho. Depois, na madrugada equatorial, todos se calam e só se escuta uma sinfonia de rã e sapos, lembrando que tanta fúria esportiva é só um murmúrio no meio da selva.

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