Torcer ou fazer oposição? Exposição em SP relembra uso político do futebol

Vanessa Ruiz

Do UOL, em São Paulo

Que muitos governos tentaram (e continuam tentando) usar o futebol para fins políticos, não é novidade. Mas se "lembrar é resistir", uma exposição em São Paulo o faz tirando dos porões as histórias que ligam o esporte mais praticado no Brasil aos regimes autoritários. Inaugurada no primeiro final de semana após a abertura da Copa do Mundo no país, "Política F.C. O futebol na ditadura" permanece no Memorial da Resistência até 28 de setembro, com entrada gratuita.

De certa forma, e ao menos em um aspecto, os sentimentos conflituosos provocado pelo gosto por futebol e pelo desgosto com a política no país, experimentados durante a Copa de 1970, se assemelham ao que muitos brasileiros têm vivenciado em relação à Copa deste ano no Brasil.

Ao mesmo tempo em que querem torcer pela seleção, se opõem aos gastos públicos com o evento Copa do Mundo. Em 1970, a oposição era ao regime ditatorial. Se os elementos externos são diferentes, a angústia vivida por tantos brasileiros é muito parecida.

"A ideia de fazer a exposição surgiu quando assisti pela milésima vez ao filme 'O ano em que meus pais saíram de férias'. Pensei como é que os caras que estavam presos torceram pela Copa de 1970. Queríamos buscar o olhar do ex-preso político", explica Vanessa Gonçalves, curadora junto com Milton Bellintani, ambos jornalistas.

Foi feito um vídeo com depoimentos de ex-presos políticos falando justamente sobre este conflito interno parte intelectual, parte sentimental, com relatos de exilados que se renderam à torcida pela seleção quase que num ato de resistência, como que se negando a deixar que o regime tirasse deles uma de suas mais profundas paixões, a paixão pelo futebol.

Mas a curadoria foi além e resgatou a relação do esporte com a política desde o momento em que Charles Miller trouxe a modalidade ao Brasil. A exposição tem quatro murais. O primeiro traz o início do futebol no país e chega até o movimento "Democracia Corinthiana", liderada por Sócrates, Wladimir, Casagrande e Zenon, então jogadores do Corinthians e fortemente engajados na retomada da democracia durante a década de 1980.

O segundo painel foca a década de 1970 e o uso da Copa do Mundo para tentar criar a imagem do Brasil perfeito, de sucesso em todas as áreas, alavancado pelo "milagre econômico".

O terceiro painel mostra personagens que lutaram contra a ditadura, como Nando, irmão de Zico, anistiado político cuja história só veio à tona em 2011 -- por ter colaborado com um programa de alfabetização liderado por Paulo Freire, inimigo do regime, Nando foi perseguido até o ponto de desistir da carreira de jogador.

Outro personagem lembrado é o goleiro argentino Andrada, conhecido como "El Gato", que ficou famoso por ter tomado o milésimo gol de Pelé. Ele foi acusado de ter participado da morte de militantes durante a ditadura argentina (1976-83).

Já o quarto mural se atém a casos internacionais, como por exemplo o uso do Estádio Nacional do Chile como campo de concentração para presos políticos em 1973.

"Acho que a exposição é uma grande reflexão justamente pelo momento que estamos vivendo. Essa disputa: 'Vamos torcer a favor, contra', com todos os problemas. Eu acho que a gente vê pelo depoimento dos ex-presos políticos que é possível separar a questão do futebol da questão da política e conseguir amar as duas coisas ao mesmo tempo", analisa Vanessa.

Segundo a curadora, a ideia é transformar a extensa pesquisa em livro: "A pesquisa é muito maior do que acabamos conseguindo expor. Esperamos conseguir publicar algo mais adiante".

Exposição fica no antigo prédio do Deops/SP

O local que recebe a exposição Política F.C. não podia ser mais simbólico. O Memorial da Resistência foi instalado no prédio que sediou, entre 1940 e 1983, o Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (Deops/SP), "uma das polícias políticas mais truculentas do país, principalmente durante o regime militar", conforme define precisamente o próprio folheto do espaço.

Durante a visita, a reportagem do UOL Esporte presenciou um encontro interessante. Um grupo de alunos de São José dos Campos, interior do Estado, percorria a exposição quando encontrou por acaso o sindicalista Alberto Souza, anistiado político que chegou a ficar preso ali mesmo, no prédio do Deops, por 27 dias. Alberto estava com a esposa e filhos: "Trouxe minha família aqui para mostrar a eles onde fiquei, as celas, tudo".

Os estudantes logo cercaram Alberto e ouviram por bons minutos suas histórias, de tortura e perseguição. "Lembrar é resistir", sentenciou José Carlos Souza, de 14 anos, quando questionado sobre o que mais havia chamado sua atenção na visita. Já Victória Crispim, de 14 anos, escolheu uma frase de Alberto: "A única coisa da qual você não pode desistir é da luta". 

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