Haitiano que perdeu filho no terremoto reconstrói vida em obras da Copa

Felipe Pereira

Do UOL, em São Paulo

A preparação da Copa do Mundo no Brasil conta com mão de obra de refugiados estrangeiros, gente que mais do que erguer estádios trabalha para reconstruir a vida. Mas certas coisas não têm conserto. Pierre Ehanet, de 57 anos, sabe bem disso. Não importa quanto dinheiro ele ganhe no Brasil, jamais vai trazer o filho de seis anos de volta. Edu foi uma das milhares de pessoas que morreram soterradas no terremoto de 2010 no Haiti.

É com uma cicatriz deste tamanho que o haitiano trabalha na recuperação de uma da Avenida Djalma Batista, umas da principais vias de Manaus e que leva ao estádio da Copa. Outros 68 conterrâneos ajudaram na reforma do Vivaldão, rebatizado de Arena Amazônia. O canteiro de obras da Arena Pantanal, em Cuiabá, conta com 97 haitianos. Os dados são das empreiteiras responsáveis pelas obras.

Esta legião estrangeira trabalha com a cabeça na terra natal. A maior parte do salário é enviada para os familiares no Haiti. O dinheiro recebido por Pierre vai para Porto Príncipe e ajuda a reerguer a casa e garante a escola dos outros filhos. A educação no país é majoritariamente privada.

Os acontecimentos que levaram o agricultor haitiano de 57 anos a se tornar um pedreiro no Brasil começaram às 16h53 (horário do Haiti) de 12 de janeiro de 2010. Neste momento, Pierre seguia pela estrada para visitar a mãe que morava numa cidade a 40 minutos de Porto Príncipe. Ele interrompeu a viagem quando o chão tremeu com violência por causa do terremoto que atingiu 7 pontos na escala Richter, que vai até 9.

Pierre voltou à capital do Haiti e a preocupação aumentava a medida que via a cidade em ruínas. Quando finalmente avistou sua casa, bateu o desespero. Os parentes choravam ao redor dos escombros da construção de dois andares. Edu estava embaixo de um amontoado de cimento e tijolos. Nenhum som vinha do interior dos entulhos. Não havia esperanças.

O que restou a Pierre foi se juntar ao seu povo para enterrar 316 mil corpos. O que não sobrou para ele e os haitianos foi o básico: água, comida e remédios para 1,5 milhão de flagelados. A nação mais pobre do Ocidente, que em pleno século 21 sofre de doenças típicas da miséria como o cólera, perdera o pouco de infraestrutura que contava. Os saques foram consequência.

Em meio ao caos, a tarefa inicial foi garantir o mínimo para o sustento da família. Terminada esta etapa, Pierre caiu no mundo em março de 2010. Desde então, busca meios de reconstruir a vida de 10 pessoas que dependem dele: pais, filhos, mulher e irmãos. A primeira parada foi a Venezuela, destino lógico porque basta atravessar o Mar do Caribe.

Mas a crise no país tornou impossível mandar dinheiro para a família em Porto Príncipe. Manaus foi o próximo destino. Há sete meses ele chegou à cidade distante 2,75 mil quilômetros de Porto Príncipe e que passou a receber levas de haitianos desde que o governo Lula prometeu abrigo para os refugiados.

Pierre vive num abrigo da ONG Ama Haiti e trabalha na construção civil, principal ocupação dos refugiados. O contrato vai até outubro e contando horas extras rende R$ 1,2 mil por mês que vão para o Haiti. Depois que a obra terminar ele planeja visitar Porto Príncipe. Quer construir o segundo andar da casa que até agora tem somente paredes e uma laje. Nada que impeça de servir como lar para um irmão.

Ele pode se considerar um felizardo porque tem emprego e carteira assinada. Aqueles que não têm vivem de uma maneira que lembra os Estados Unidos pós crise de 1929, quando a bolsa derreteu quebrando empresas e explodindo a taxa de desemprego. Os haitianos sem a mesma sorte de Pierre se reúnem em grupos e saem pelas ruas de Manaus a procura de trabalho.

Holson, 25 anos, integra esta espécie de bonde dos desesperados. Querendo evitar sofrimentos, ele não diz o sobrenome nem aceita tirar fotos. Tem medo que a família descubra as condições em que está vivendo no Brasil. O rapaz trabalhou em janeiro e fevereiro na construção do Vivaldão fazendo o serviço mais braçal possível. Limpava manchas de tinta e cimento dos vidros e pisos. Mas foi dispensado porque a obra estava quase terminada.

Outra situação que lembra o crash de 1929 nos Estados Unidos é que empresas procuram abrigos de haitianos para obter mão de obra barata. Sabem que encontrarão gente com poucas oportunidades e dispostas a encarrar qualquer coisa. Realidade acompanhada de perto pelo padre Gelmino Costa, que  trabalha na Paróquia São Geraldo, referência na recepção de haitianos e é bem conhecida em Porto Príncipe. Ele conta que empresas do Sudeste e principalmente Sul do Brasil aparecem com frequência para recrutar haitianos. As vagas são na agroindústria e fábricas.

O coordenador da ONG Ama Haiti relata o mesmo roteiro e diz que foi assim que um filho de Pierre acabou parando no interior de Santa Catarina. A necessidade separou o que restava de família para ele. Mas a situação pode ser considerada um privilégio. Holson tem o mesmo objetivo, conseguir emprego com carteira assinada numa cidade segura do interior. Ele sabe que São Paulo tem muitas oportunidades, mas as notícias do Cidade Alerta e Brasil Urgente fazem ter medo da violência.

O sonho de consumo dos haitianos que vivem em Manaus virou realidade para 97 conterrâneos que moram em Cuiabá. Uma parceria entre a Superintendência Regional do Trabalho e a empreiteira Mendes Júnior abriu vagas para estes refugiados trabalharem na construção da Arena Pantanal. Gente como James Berson, 21 anos.

O rapaz começou como auxiliar administrativo e agora trabalha na obra do estádio. A rotina deve mudar e ele não vê a hora disto acontecer. James passou no último vestibular da Universidade de Cuiabá e vai cursar Medicina. As aulas já começaram, mas a burocracia atrapalha os planos.

É preciso receber uma autorização de Brasília e isto está demorando. Mesmo com o contratempo, James se diz ser grato ao Brasil, terra de povo acolhedor e de oportunidades. Mas tudo isso fica atrás de outra qualidade. "Aqui não tem terremoto".

Stevenson Andre, 33 anos, também não tem queixas do país tanto que levou a família toda para Cuiabá. Avisado por um amigo que havia possibilidade de emprego na cidade, deixou o Peru e não se arrepende. Consegue mandar US$ 500 ao mês para os parentes no Haiti. Para eles, cada dia no Brasil é um passo adiante na reconstrução da e suas vidas.

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