O dia em que CBF driblou a Fifa e mudou a camisa da seleção por US$ 3 mi

Adriano Wilkson

do UOL, de São Paulo

  • Getty Images

    Sócrates, durante a Copa 1982, e o escudo com um ramo de café sobre a Jules Rimet

    Sócrates, durante a Copa 1982, e o escudo com um ramo de café sobre a Jules Rimet

Imagine se a CBF (Confederação Brasileira de Futebol) resolvesse estampar dentro do escudo da seleção brasileira na Copa do Mundo a imagem de, digamos, uma folha de café.

Imagine que, para isso, ela precisasse mudar completamente o desenho do escudo da camisa, que tinha sido o mesmo havia mais de 50 anos.

E que, de quebra, ainda entrasse numa briga institucional com a Fifa (Federação Internacional de Futebol).

Foi exatamente o que ela fez em 1982, no seu primeiro ano de vida, às vésperas da Copa que consagraria o time símbolo do futebol-arte brasileiro.

Quem estava no estádio de Sevilha no dia 14 de junho daquele ano quando a seleção enfrentou a União Soviética talvez não tenha percebido que ali no cantinho do escudo havia aquele minúsculo ramo de café.

Mas o Instituto Brasileiro do Café (IBC), estatal responsável por aquela heterodoxia no manto da seleção, já tinha anunciado nos principais jornais do Brasil:

"Café e futebol sempre se deram bem. Agora estão mais juntos do que nunca", dizia um enorme anúncio da época com imagens de todos os jogadores e a de uma xícara. "Resultado: 32 partidas dentro e fora do país e apenas duas derrotas (sem o raminho)."

O "raminho" havia entrado no uniforme da seleção como uma ação de marketing de um produto importante na balança de exportações do Brasil que começava a perder terreno para concorrentes de outros países.

A CBF havia recebido US$ 3 milhões como patrocínio para mudar seu escudo, um movimento ousado para época e que gerou reações indignadas; entre elas a da Fifa, presidida por João Havelange.

A CBF, presidida pelo empresário Giullite Coutinho, já vinha usando o raminho em outras partes da camisa, mas Havelange vetou sua escalação para o Mundial com o argumento de que as outras seleções não tinham patrocínios no uniforme.

Foi então que Coutinho decidiu transferir o raminho para dentro do escudo. Para isso, ele pediu à Topper uma remodelação total do brasão: a tradicional cruz de malta daria lugar à taça Jules Rimet encimada, pela primeira vez em uma Copa, pela sigla CBF (antes a sigla era a da Confederação Brasileira de Desportos).

Coutinho precisou aprovar a mudança no Conselho Nacional do Desporto, onde também houve resistência, mas no fim o argumento financeiro falou mais alto.

José Estevão Cocco, presidente da Associação Brasileira de Marketing Esportivo, já trabalhava nessa área na década de 1980. Hoje, ele afirma que o episódio foi um marco na relação entre a seleção brasileira e a publicidade.

"Foi nessa época que o marketing esportivo começou a florescer", diz. "O voleibol, antes do futebol, já tinha conseguido liberar a colocação de marcas nas camisas. Antes disso, o patrocinador podia aparecer de outras formas, mas não no peito dos jogadores."

CAFÉ COM FUTEBOL

O IBC não era neófito na área. Desde a década de 60, o instituto já trabalhava para associar a marca do café brasileiro ao futebol. Foi nessa época que a estatal contratou Pelé e Garrincha como garotos-propaganda — diz-se que Garrincha odiava café, mas era obrigado a beber várias xícaras em eventos promocionais.

Na Copa de 1982, essa experiência se aprofundou: além de ter sua marca na camisa da seleção, o instituto espalhou na Península Ibérica outdoors com Pelé elogiando o produto, distribuiu saquinhos de pó para a torcida e serviu cafezinho na recepção dos hotéis onde o time se hospedou.

No Brasil, os marqueteiros do instituto diziam que a cada xícara comprada o brasileiro contribuía com dois cruzeiros para a seleção.

Era uma tentativa de vincular um produto tradicional a uma seleção que simbolizava um novo Brasil. O historiador Max Rocha, que escreveu dissertação de mestrado sobre o time de 82, vê nele o anúncio do fim da ditadura que controlava o país há 18 anos (os militares sairiam do poder em 1985).

"Essa seleção era chamada pela [revista] Placar de 'seleção da abertura [política]'", diz o acadêmico. "Ela é uma reconciliação entre a essência do futebol-arte com os aspectos ditos mais modernos do período, que eram a implantação de uma gestão empresarial no futebol."

Na avaliação do pesquisador, os marqueteiros do IBC embarcaram nessa onda de modernização para tentar levar junto o café brasileiro.

A iniciativa se insere em um contexto maior no qual a recém-criada CBF, liderada por um homem de negócios, tentar inovar nas suas fontes de arrecadação. "A CBF [nessa época] está no modelo de expansão do produto. Aí que vem a Topper fornecer o material esportivo, vem o IBC, vem uma política de licenciamento para evitar a concorrência de produtos não oficiais etc."

DERROTA DENTRO E FORA DE CAMPO

Mas os três gols do italiano Paolo Rossi no estádio do Sarriá não foram apenas a derrota da equipe de Zico, Sócrates e Falcão nas quartas de final da Copa, mas a do próprio grupo político de Coutinho, que começaria a perder força.

O presidente-empresário ficaria na CBF até 1986, assim como o raminho de café. Na Copa do México, já sem o dinheiro do IBC, a logomarca ainda estaria lá, mas seria rapidamente escanteada a pedido da Fifa.

Três anos depois, João Havelange conseguiria indicar à presidência da federação brasileira o seu próprio genro, Ricardo Teixeira, que iniciaria seu reinado de 23 anos. 

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