Ian Walton/Getty Images

Contra a Irlanda, a Argélia começou com sete 'franceses'; outros quatro vieram depois

07/06/2010 - 12h01

Com 'invasão francesa', Argélia tem 17 estrangeiros na seleção

Rafael Veríssimo
Em São Paulo

A presença de jogadores naturalizados nas seleções não é novidade. Mas o caso do time da Argélia não encontra precedentes na história das Copas do Mundo: nada menos do que 17 dos 23 atletas convocados para a lista final do técnico Rabah Saadane nasceram fora do país.

E o berço de todos eles é a França, país que sempre recebeu imigrantes em sua equipe e que agora vê o movimento inverso.

Seja pela grande concorrência no futebol francês, seja pelo patriotismo somado ao estigma social das pessoas oriundas do Magreb (norte da África) e seus filhos na Europa, o fato é que os dirigentes argelinos aproveitaram a oportunidade e incorporaram diversos talentos europeus à sua seleção.

Se a questão do preconceito pode parecer distante de um universo tão à parte e cheio de glamour como o futebol, segue o relato de Habib Bellaïd, um dos franceses que optaram pela Argélia no último instante.

“Já vesti as cores de todas seleções de base francesas, até a sub-21. Apesar disso, não sinto nenhuma ligação com estas equipes. Estou persuadido de que, no fim das contas, para eles somos apenas uns árabes. Então, estes jogadores que escolhem o país de suas famílias estão respondendo a uma chamada do coração”, declarou o zagueiro à imprensa argelina em abril último.

Refluxo colonial nas Copas

Historicamente, a França sempre incorporou à sua seleção atletas de suas colônias, ex-colônias ou ainda filhos de imigrantes.

SELEÇÃO FRANCESA E SEUS IMIGRANTES

  • A presença de imigrantes e seus filhos no futebol da França pode ser observada nos campinhos de pelada nos subúrbios das grandes cidades do país.

    Um dado que confirma este crescimento está na própria composição das seleções francesas das últimas Copas: em 1998 e 2002, os Bleus tinham 12 atletas cuja família vem de fora da França continental, número que subiu para 16 em 2006 e voltou a 14 na atual seleção que vai à África do Sul. Efetivamente estrangeiros, eram três nas Copas de 2002 e 2006 e dois nas edições de 1998 e na próxima, em 2010 - no atual elenco, o lateral Patrice Evra nasceu no Senegal e o goleiro Steve Mandanda é natural da República Democrática do Congo.

    Entre as novas gerações, a tendência observada é a mesma. Na equipe sub-21 da França convocada no biênio 2009-2010, 17 jogadores são filhos de imigrantes, dentre os quais dois vieram das colônias francesas e dois são estrangeiros.

Um dos casos mais famosos, longe de ser isolado, é o do astro Zinedine Zidane, nome e pais argelinos, que se tornou o grande exemplo dos jovens franceses de ascendência magrebina.

Anos antes, porém, outros atletas de ascendência estrangeira já faziam sucesso. Jean Tigana, por exemplo, um dos destaques do meio-campo da França das Copas de 1982 e 1986, nasceu no Mali, enquanto Just Fontaine, recordista de gols em uma só Copa (13 gols pela França em 1958) nasceu em Marrakesh, no Marrocos.

Em que pese o histórico da seleção ou da própria França, o que está por trás deste fenônemo é o fato de que o número de praticantes de futebol no país tem visto uma predominância de estrangeiros ou de filhos de imigrantes africanos (ver box ao lado), ainda que estes estejam em minoria demográfica (representam 10% da população, segundo pesquisa governamental referente a 2005).

Para os franco-argelinos que desejam ir além, se profissionalizar e chegar a uma seleção, além da grande concorrência, há também a probabilidade de desilusão na tentativa de se tornar um “novo Zidane”. Karim Benzema, Samir Nasri e Hatem Ben Arfa eram as maiores promessas da França há três anos e, apesar de terem muitos anos de futebol pela frente, já ficaram de fora da Copa de 2010, o que fez a França, pela primeira vez desde a Eurocopa de 1992, não ter nenhum jogador de ascendência magrebina em sua equipe.

Com exemplos de jogadores de mais destaque que não vingavam na Europa, vários franco-argelinos optaram pela nação africana desde o início. Para isso, se arriscaram cair em maus lençóis com os dirigentes franceses, desgostosos do fato de formar estes jogadores, mantê-los em equipes locais, para que depois eles abandonem o país adotivo.

Na atual seleção da Argélia, é o caso do zagueiro Madjid Bougherra, do meia Karim Ziani e da esperança de gols Abdelkader Ghezzal. Além deles há Mourad Meghni, meia da Lazio, craque da seleção, que no entanto ficou de fora da Copa por lesão.

Todos eles, em diferentes épocas, integraram a equipe ainda na fase das Eliminatórias para a Copa do Mundo. A Argélia já contava com vários franceses, mas ainda tinha mais por vir.

OUTROS FRANCO-AFRICANOS DA COPA

  • (Da esq. p/ dir.) Ayew, Demel e Assou-Ekotto

    Ainda que o caso da Argélia seja único, outras seleções também contam com franceses que decidiram deixar de tentar sua sorte com os Bleus para jogar no país de origem de suas famílias.

    Benoit Assou-Ekotto e Sebastien Bassong, ambos atletas do Tottenham da Inglaterra, nasceram na França mas jogarão por Camarões na Copa do Mundo. Assou-Ekotto até queria ser convocado para os Bleus e declinou seguidos convites de Camarões desde 2006. Convencido de que não teria uma vaga, acabou estreando pelos Leões Indomáveis em 2009, mesmo caso de Bassong, que havia jogado pela França sub-21.

    Já Guy Demel e Souleymane Bamba não hesitaram e aceitaram jogar pela seleção da Costa do Marfim logo de cara, mesmo caso de André Ayew, que nasceu em Lille, na França, mas jogará por Gana na Copa do Mundo. Também pudera: ele é filho de Abedi Pelé, grande astro do futebol africano e ídolo absoluto em seu país.

Mais reforços

Confirmada a participação dos argelinos no Mundial da África do Sul, os dirigentes passaram a tentar agregar ainda outros jogadores que poderiam reforçar o elenco que irá representar o país na Copa pela terceira vez.

De modo que, vislumbrando uma participação no maior torneio do futebol mundial, várias promessas franco-argelinas, que inclusive já haviam integrado as seleções de base da França, optaram finalmente pela Argélia.

Os casos de alguns jogadores são emblemáticos: Hassan Yebda e Djamel Abdoun chegaram ao time na penúltima partida das Eliminatórias; Mehdi Lacen estreou pela Argélia apenas na Copa da África de Nações, em janeiro de 2010; enquanto Habib Bellaïd, Ryad Boudebouz e Foued Kadir (todos com passagem pela base francesa) sequer haviam jogado pela seleção argelina quando foram convocados para a Copa do Mundo, em maio de 2010.

Todos eles se beneficiaram da mudança do regulamento da Fifa, feita em meados de 2009, que retirou a idade-limite de 21 anos para que jogadores que já haviam atuado por uma seleção nas categorias de base trocassem de país. Com a alteração, uma proposta cuja autoria e lobby portam a assinatura da Federação Argelina, somente os atletas que já atuaram pela seleção principal não podem mudar de país.

Rejeição em terra natal

Não só a concorrência e a certeza de jogar uma Copa do Mundo explicam a opção destes jogadores. Há também um certo orgulho, oriundo de uma situação social desfavorável aos imigrantes e seus descendentes na França.

No caso da Argélia, a França promoveu a imigração massiva de mão de obra de sua então colônia africana para reconstruir o país após a Segunda Guerra Mundial, terminada em 1945.

Mais de sessenta anos depois, o país vê a terceira geração de descendentes de argelinos, grupo para o qual alguns setores da sociedade francesa portam um olhar diferenciado por conta de sua situação delicada.

Vivendo, na maior parte dos casos, na periferia das grandes cidades, esta terceira geração de argelinos continua a sofrer preconceito por sua origem magrebina, ainda que, perante a justiça, sejam tão franceses quanto um legítimo descendente de Asterix.

Este grupo social sofre um problema de falta de identidade: vivenciam a cultura original de sua família de maneira distorcida, muito por conta da influência dos valores ocidentais modernos, que os induz muitas vezes a considerarem a visão de mundo de seus pais ultrapassada e distante.

Mas tampouco se veem como 100% franceses, dada a exclusão social que muitos sentem na pele.

Talvez por isso, não só Carl Medjani mas seu pai, o argelino que lhe deu a nacionalidade, verteram lágrimas quando souberam da convocação para a Copa do Mundo. “Quando meu pai ficou sabendo da notícia, começou chorar. Logo ele, tão durão, tão orgulhoso de si... Estou pronto a deixar meu sangue no campo pela Argélia”, contou o defensor à imprensa de seu país logo após a confirmação de sua presença no Mundial.

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